Reforma administrativa ou fim do pacto de 1988? por Liana Carleial

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A importância e responsabilidade de aprovação de uma PEC decorre exatamente do seu objetivo:  substituir determinações constitucionais.E neste caso, da nossa Constituição Cidadã de 1988- CF88 que definiu um marco civilizatório para os brasileiros, um Estado diretivo, a obrigação do planejamento descentralizado e participativo e a obrigatoriedade de responsabilização indelegável do Estado no atendimento de suas populações.

A bem da verdade, a CF88 sempre foi uma  “pedra no sapato” dos oligarcas, dos donos de terra, da elite arrogante e dos políticos que sempre estiveram ligados ao atraso. O ex-presidente Sarney, no dia seguinte de sua promulgação afirmou: “a Constituição Federal não cabe no orçamento”. Numa entrevista para o Consultor Jurídico, publicada em 14.09.2008, ele volta a dizer que a CF88 tornou o país ingovernável porque foram incluídas reivindicações corporativas. Enfim, os avanços sociais propostos por ela nunca foram aceitos por parcela da população. Na realidade, essa é apenas uma expressão da  sociedade brasileira que nunca ascendeu à condição de nação, tal o grau de desigualdade que lhe atravessa. Por essa mesma razão, não há solidariedade entre as classes sociais no país e nem mesmo o mais leve traço de fraternidade.

O primeiro passo concreto para a fragilização da CF-88 foi a instituição da Desvinculação das Receitas da União –DRU, em 1994, que permitiu  ao Governo Federal lançar mão de 20% de tudo que fosse arrecadado, mesmo que vinculado a despesas e fundos; já no intervalo Temer, esse percentual chegou a 30%, impondo a redução de recursos para a Seguridade Social e educação, por exemplo. A PEC 32/2020 se constitui em mais um ataque à CF88.

Desde 2016, após o golpe midiático-político-judicial, vivemos uma avalanche de reformas que objetivam entregar o país ao mercado, como se isso fosse uma alternativa possível, para um país subdesenvolvido e atravessado por profundas desigualdades. Interessante observar que, sequer uma vez, a equipe econômica, ora no poder, citou um exemplo de país aonde tal proposta tenha sido implementada exitosamente.

 A primeira “reforma” , a trabalhista, sob o comando do empresário-senador Tasso Jeressati/PSDB, aconteceu muito rapidamente, logo após o golpe contra a presidenta Dilma, a CNI – Confederação Nacional da Indústria venceu todas, pois conseguiu imprimir, na letra da reforma, parte significativa de sua sugestões para “modernizar” as relações de trabalho no país[1] . A proposta resultante, aprovada rapidamente, incorporou então as sugestões empresariais que reduziam os direitos trabalhistas, fragilizavam os sindicatos e a Justiça do Trabalho. A segunda, a previdenciária, não saiu como a equipe econômica desejava, mas fragilizou a previdência pública, ampliou o tempo de trabalho para muitos brasileiros e  deixou claro que o grupo no poder precisava ser blindado. Policiais, militares de todas as cores e patentes, e o poder  judiciário ficaram de fora; especificamente, o grupo militar foi bem privilegiado: obtiveram  aumento de salários, de benefícios e melhores condições na passagem para a reserva.

Essas duas primeiras reformas aconteceram no contexto da Emenda Constitucional 95, aprovada em 2016, que congela os gastos públicos por 20 anos. Ou seja, o Estado Brasileiro está constitucionalmente impedido de gastar, com todas as consequências que esse fato gera[2]. O mais bizarro é que mesmo que a arrecadação aumente, num contexto de austeridade fiscal, não será possível gastar. 

Agora chegou a vez da chamada Reforma Administrativa, que não é de fato, uma reforma administrativa e, sim, uma transformação profunda na     concepção e natureza do Estado brasileiro. Sem surpresa e bem coerente com a visão desinformada e parcial instalada por Collor de que é preciso extinguir os marajás, que o Estado brasileiro é inchado e os servidores públicos ganham muito.Em 2016, escrevi um  artigo negando essas inverdades que não passam de meios de manipulação da opinião publica e dos incautos que acreditam nas soluções dadas apenas pelo  mercado[3].Uma boa fonte para desmistificar tais mitos também é o Atlas do Estado Brasileiro, produzido pelo IPEA[4]. Entretanto, como discutiremos a seguir é a mais agressiva e ousada no que se refere ao ataque ao Estado brasileiro. Neste momento tem um tom bem mais grave porque está  sendo proposta por quem não conhece o Estado, não o respeita e cujo projeto é eliminar a possibilidade de possuirmos um Estado forte, com servidores públicos compromissados com a cidadania e com os destinos do país. Durante a campanha eleitoral de 2018, o atual ministro da economia demonstrou desconhecer a sistemática do PPA- Plano Plurianual, quando declarou,publicamente, que faria o orçamento de 2019.

A priori, já consideramos  que a proposta apresentada  não está em condições de ser aprovada por 3/5 da Câmara e 3/5 do Senado. Trata-se apenas da primeira etapa que muda a CF88, porém as demais etapas foram postergadas para leis complementares, o que transforma a aprovação da proposta comparável a uma assinatura num cheque em branco. Questões  como gestão de desempenho, diretrizes de carreira, consolidação de cargos, funções e gratificações serão, diz a proposta, objetos de leis complementares. Ademais, a proximidade das eleições municipais  funcionou como um marcador de tempo relevante para adiar o avanço da proposta. Quem arriscaria assinar um cheque em branco às vésperas das eleições em suas bases políticas?

O texto da proposta afirma que só ocupantes de carreiras de Estado, cujo ingresso se fará por concurso,  terão estabilidade. Mas não se sabe que carreiras serão essas pois essa definição se fará a posteriori. Cargos típicos de Estado, atualmente, são diferenciados, em condições de trabalho e salários. Não é abusivo considerar que o atual governo parece apostar numa luta fraticida entre os servidores públicos para que essa definição seja feita. É de fato, um desrespeito a todo o corpo funcional do Estado brasileiro. E a definição final será técnica ou política? Professores, médicos, dentistas, assistentes sociais nunca foram vistos como carreira típica  de Estado mas são imprescindíveis, sobretudo, num pais subdesenvolvido e diante de tudo que está sendo vivido nessa pandemia. Terão ou não estabilidade? Essa é uma questão incontornável e que precisa ser respondida.

Este artigo objetiva contribuir para a compreensão da natureza dessa emenda constitucional e está organizado em três seções, além dessa introdução e dos comentários finais.   Na primeira seção confrontamos  o que diz a PEC, e o que nós identificamos como a sua maior marca e o seu maior risco, se aprovada ; na segunda, apresentamos como o servidor é visto pela proposta e, finalmente, na terceira seção,  discutimos como os princípios da administração pública deliberativa podem auxiliar na construção de uma reforma administrativa verdadeiramente compromissada com a importância do Estado e dos servidores públicos para o desenvolvimento de um país ou região.

1. O que diz o texto e o que é de fato a PEC 32/2020: um autêntico “pulo do gato[5]

A PEC propõe um Novo Serviço Público para vencer o atraso. Afirma  a necessidade de um Estado Moderno,  próximo à realidade brasileira  e que garanta condições orçamentárias e financeiras para a sua existência.  O pressuposto central é que o Estado custa muito e entrega pouco, o que constitui um agravo à toda população brasileira. O Estado brasileiro atende a 212 milhões de pessoas, e esse atendimento  cresceu muito nos últimos anos. Chega  a ser agressivo usar esses pressupostos, em plena pandemia, quando o SUS, mesmo com recursos reduzidos, desde 2016, literalmente salvou o país de uma tragédia ainda maior do que a retratada nos 165 mil óbitos de brasileiros, por covid-19. 

A motivação  então é a mesma dos últimos anos, ou seja, a questão fiscal, mas com o sinal invertido, ou seja, ao invés de considerar a potencialidade do gasto público num país como o nosso, o destaque é para os cortes de gastos . Considerando que quase metade do orçamento público é destinado ao pagamento de juros e amortizações da dívida é surpreendente que esse aspecto determinante da realidade não seja visto como relevante a ser considerado, e sim o custo de pessoal que gira em torno de 4,3% do PIB e se mantém nesta marca, desde 1997[6], para os servidores da União, chegando a 10% do PIB, para o conjunto dos servidores.   Ou seja, esse governo explicita muito bem que solução propõe para o conflito: entrega o Estado brasileiro para preservar os interesses rentistas. Recentemente, o Senado aprovou a independência do Banco Central, o que, certamente, ampliará o domínio do mercado financeiro. É verdade que essa questão ainda será votada  na Câmara, porém, não há razão para imaginarmos que os interesses que dominam essa casa sejam diferentes dos que dominam o Senado. Parece mais distante ainda a possibilidade de libertar o país da EC95, a do teto dos gastos públicos.

O Brasil está muito isolado do resto de mundo, desde 2018, e parece desconheceraté as orientações do FMI, sobre as previsões de gastos públicos para o conjunto de todos os países do mundo, que vão na contramão do caso brasileiro. Igualmente, o afrouxamento das  rígidas regras, até recentemente vigentes entre os países da União Européia, mas que agora permitem o aumento de seus gastos públicos.A orientação mundial é de ampliar os gastos públicos para fazer face a crise humanitáriamas também para impedir uma gravíssima retração mundial….Mais uma vez, a questão fiscal é colocada, erroneamente,  como prioridade, entre nós.

Na exposição, feita pelo governo, para apresentar a proposta foi dito, seguidas vezes, que o centro da reforma é a ruptura da forma de acesso ,hoje, centrada no concurso público, para todos os cargos públicos com garantia de estabilidade. Na proposta apresentada extingui-se o regime jurídico único, a estabilidade restringe-se aos cargos típicos de Estado e são criados cinco tipos distintos de vínculos. Assim, as vias de acesso propostas são concurso público, processo seletivo simplificado, provas e provas de títulos. Permanece a exigência do concurso público para o cargo típico de Estado,  com estabilidade e cargo por prazo determinado, sem estabilidade.  Na nossa avaliação, entretanto,  não é essa a centralidade da reforma, apesar da insistência dos expositores.

O “pulo do gato”  da proposta é, sim, a introdução  da subsidiariedade como um princípio da administração pública[7]. Trocando em miúdos, o Estado não teria mais o compromisso constitucional de prestar à população os serviços públicos, de educação, saúde, assistência social, segurança, por exemplo. Rigorosamente, esse princípio diz que as necessidades da população devem ser atendidas pelo seu círculo mais próximo, como a família. Só em última instância, o Estado seria acionado. E não o Estado como o conhecemos hoje, mas as empresas para  as quais o Estado houver transferido essa tarefa através da compra de seus serviços. Não minimizemos a declaração do senhor presidente, logo no início da pandemia, de que os responsáveis pelos idosos seriam as suas famílias e não o Estado, abstraindo o Estatuto dos Idosos que diz exatamente o contrário. Igualmente, a tentativa de transferir a responsabilidade do Estado pela segurança pública para os indivíduos, através da ampliação do direito de porte e posse de armas no país. Então, para quê o Estado? Nesta proposta apenas para fornecer à iniciativa privada novas formas de lucratividade, transformando todas as suas funções em possibilidades de acumulação primitiva para essa classe no país.  De forma totalmente escancarada e legal, pois legitimada por uma mudança constitucional. Nenhum cidadão poderá questionar essa medida.

O Estado brasileiro só prestaria serviços públicos de forma complementar à iniciativa privada. Sim, porque a proposta incentiva fortemente a “cooperação” entre o setor público e o setor privado, incluindo a cessão de prédios públicos para que a iniciativa privada os ocupe e faça a prestação de serviços ou a entrega de bens em atividades que antes dessa “modernização”   era responsabilidade indelegável do Estado. Tudo isso através de um mecanismo bem conhecido e usado, há pelo menos 20 anos, por exemplo, pelo governo de Minas Gerais e a prefeitura de Curitiba: “A Contratualização por Resultados”. E a esse procedimento a proposta  chama de fortalecimento da governança pública. Assim, vai ficando cada vez mais evidente  a  coerência entre todas as ações que buscam destruir o estado brasileiro e seu compromisso indelegável de  atender às necessidades de suas populações, como propõe a CF88.

Os gastos precisam ser cortados para que a dívida seja paga.  Para isso pode ser preciso até desvincular todos os recursos públicos que hoje dão conta, por exemplo da educação e saúde,  o que o grupo no poder chama de engessamento dos gastos obrigatórios do Estado brasileiro que impedem/reduzem as possibilidades de investimento público. Tudo bem orquestrado, mas sem discussão com a sociedade e  sem ouvir o cidadão. Esta proposta de “entregar tudo” para pagar a dívida está se transformando num problema de proporção insustentável. Não será possível, penso, sacrificar toda a população brasileira e a construção sempre inconclusa de sua democracia para  sustentar os portadores da dívida pública.

A proposta da PEC32/2020 claramente objetiva remercantilizar todos os serviços públicos prestados aos cidadãos. Quer se fazer crer que educação , saúde, e previdência, por exemplo, devem ser comprados no mercado e ai, sim, seriam de melhor qualidade e “eficientes”. Isso significa um retrocesso de quase um século, quando os países desenvolvidos desmercantilizaram as mercadorias fundamentais para a reprodução dos trabalhadores as quais passaram a ter preços políticos(Oliveira, 1988).Naquela ocasião, para alguns países, foi possível construir um Estado Social. Concretamente, estamos perdendo a possibilidade da construção desse coletivo bem como a possibilidade de construção da nação brasileira que, como bem sabia Celso Furtado, exige um mínimo de homogeneidade nas condições de vida de todos os brasileiros[8].

A inclusão do princípio da subsidiariedade coloca o Estado brasileiro numa posição de coadjuvante do setor privado na prestação dos serviços públicos e sinaliza para o mercado novas oportunidades de lucratividade. Esse fato talvez explique a atitude da CNI em entrar no debate, alertando sobre o peso do gasto com servidores, que, como vimos, são estáveis há quase 30 anos.

Interessante observar que enquanto coletivo representativo dos empresários industriais, a CNI não foi capaz de defender os espaços produtivos que foram perdidos, especialmente com a atuação da Operação Lava Jato a partir de 2014. Individualmente, os empresários também calaram. A desindustrialização avançou sob seus olhos, e a participação da indústria no PIB brasileiro é atualmente inferior a dos anos 1950, quando se iniciava o processo de substituição de importações. A reprimarização da economia brasileira  é uma realidade e, em 2019, o Brasil participou com insignificantes, 1,19%, no valor adicionado da indústria de transformação mundial, atrás até da Turquia[9], passando da 10a.posição mundial para a 16a nos últimos anos. Mas, enfim, o que resta como alternativas lucrativas a esse grupo? Tudo indica que esse filão que será aberto, a partir da vigência do princípio da subsidiariedade, caso a PEC seja aprovada,vai interessar-lhes. Enfim, trata-se de novos procedimentos de privatização de serviços públicos e de transferência de conhecimento e trabalho coletivo acumulados ao longo do tempo para a iniciativa privada.

Os jornalistas presentes fizeram perguntas razoáveis, como por exemplo, porque os demais poderes da República não estão incluídos em sua totalidade? O mais constrangedor, porém, foi um jornalista indagar por que essa reforma não inclui os militares e ter como resposta:  “os militares não são servidores públicos.”  Ou seja, um agente público nega, publicamente, a Constituição Federal de 1988. Mas, são sim, os militares,  servidores públicos, e estiveram incluídos, por exemplo, na reforma da previdência, mesmo que regidos por regras próprias. A exclusão ou inclusão de qualquer grupo de servidor público no âmbito dessa PEC é uma decisão meramente política.

E porque eu afirmo que essa proposta destrói  as capacidades do Estado brasileiro? O primeiro ponto é a inclusão do princípio da subsidiariedade, já discutido acima. O segundo é a impossibilidade do Estado  planejar, conceberpolíticas públicas ( artigo 173 , parágrafo sexto). “É vedado instituir medidas que gerem reservas de mercado que beneficiem agentes econômicos. Como fazer política pública compromissada com o desenvolvimento de um pais subdesenvolvido e de uma população empobrecida  pelas duas reformas anteriores e ainda pelos efeitos da pandemia  sem “beneficiar” agentes econômicos precisos?  Como reindustrializar o país sem o BNDES que está desaparecido da cena política e econômica no país? Como reverter a pífia participação da indústria brasileira no mundo sem política industrial?

A proposta da PEC 32 além de transferir para as empresas e empresários a prestação dos serviços públicos essenciais, transfere também para eles a exclusiva função de planejar.  Para quem seria feito esse planejamento empresarial?

Neste momento no qual a guerra tecnológica entre a China e os EUA nos mostra um mundo de extrema competição entre os países hegemônicos, tendo o Brasil perdido sua inserção na geopolítica mundial, conquistada nos últimos anos, o que nos leva para uma posição ainda mais subalterna, diante da perda de Petrobras e suas refinarias, da venda de áreas do pré-sal, da ameaça de privatização das empresas que ainda nos podem conferir um mínimo de autonomia.

A realidade mundial, no pós-pandemia insinua mudanças importantes. As cadeias mundiais de valor estão sendo revolucionadas em direção às novas tecnologias e o Brasil corta investimentos em C&T, bolsas de pesquisadores e recursos para Instituições de Pesquisa como as Universidades Públicas. Talvez, o caminho mais procurado pelos distintos países seja a sustentabilidade ambiental, no intuito, por exemplo, de reduzir a ocorrência de novos vírus mas também de preservar a própria condição da vida humana. Mais uma vez estamos na contramão.  Como tentar entrar nesse novo momento sem os instrumentos do planejamento que permitem a política pública? No âmbito político com quem o Brasil pretende se aliar? As alianças sul-sul foram rompidas. E se a nova fase de movimentos no mundo forem por meio das distintas regiões? Esse é o cerne da proposta da PEC 32/2020: destruir o Estado brasileiro como planejador, impedido de estabelecer a sua função diretiva como reza a CF88 e de responsável indelegável das necessidades fundamentais de suas populações.

Fizemos questão de marcar esse ponto pois, no artigo 35, há a proposta de fortalecimento da governança pública centrada, para além do princípio da subsidiariedade, na imparcialidade e a inovação. Como falar em fortalecimento da governança pública, procedimento  que no mais simples conceito exige participação social e esse governo através de um decreto tenta eliminar todos os conselhos de política pública no país? E como o Estado poderia inovar se não pode usar a sua função diretiva castrada pelo artigo 173? Enfim, as possibilidades futuras do nosso país estarão fortemente ameaçadas. Como responder aos enormes desafios para construir a nação brasileira?

2. E quanto aos servidores públicos?[10]

A discussão anterior deixa antever, com alguma clareza, que as mudanças nas formas de acesso ao serviço público brasileiro poderão gerar uma certa desorganização e alguma insegurança jurídica, mesmo que nos queiram convencer que essas mudanças atingirão  “apenas” os novos entrantes no serviço público. Considerando o grau de vagueza presente na proposta e na forte dependência dos passos futuros, nada está perfeitamente garantido, a nosso ver.

Um dos efeitos perversos das distintas formas de acesso ao serviço público apresentadas na seção anterior, é a diferenciação que se estabelecerá entre eles. Diferenças de qualificação, diferenças de forma de acesso, enfim existirão servidores de primeira linha e servidores de segunda e terceira linhas. E os contratados por tempo determinado, serão servidores públicos ou colaboradores como as firmas costumam chamar os seus trabalhadores?  Na realidade, esse é um dos mais importantes empecilhos à formação de um “espírito de corpo” e de um sentimento de pertencimento às Instituições. O serviço público brasileiro já convive com essa realidade diante do aumento da prática da terceirização da força de trabalho autorizada pelo STF. É suportável novas segmentações? Quais servidores comporão a espinha dorsal de cada Instituição?

A estabilidade, agora atribuída apenas aos cargos típicos de Estado, é uma conquista da democracia contemporânea, uma vez que esse servidor mantém uma relativa autonomia em relação aos diferentes governos que assumem periodicamente o Estado, guardam a história anterior das Instituições e das ações realizadas, com grande potencial para se transformar em aliado da cidadania.  A estabilidade não é um privilégio do servidor, ela é, sim, uma defesa do cidadão. Argumentamos também que o servidor público é um elemento central na possibilidade de sustentabilidade institucional da política pública desde a concepção, o acompanhamento, a avaliação e as correções que porventura sejam necessárias e, finalmente, na aferição da efetividade dessas ações. Junto ao servidor, está o cidadão, objeto e motivação da ação do Estado. Será que as distintas carreiras conseguirão atrair o interesse de jovens bem formados e que estariam interessados em contribuir de forma efetiva com o desenvolvimento de seu país? Até que ponto, essa mudança eliminará o poder de atração do setor público.

A bem da verdade, é lícito considerar que essa fragmentação de acessos proposta pela PEC guarda certa compatibilidade com a inclusão da subsidiariedade e com as “práticas de cooperação” entre os setores público e privado, que incluem cessão de prédios e poderiam incluir também cessão de servidores? As formas de contratação por tempo determinado para a realização de atividades ou procedimentos sob demanda também sugerem uma adequação a essa forma de parceria. Como não se sabe as regras dessa cooperação, as quais estão postergadas para após a aprovação dessa primeira etapa, a especulação torna-se até mesmo necessária.

Finalmente, abre-se um enorme espaço para a contratação de trabalhadores por indicação política, que podem ser facilmente substituídos, pois não está claro nem mesmo que tempo configurará a contratação por tempo determinado, que poderá ser qualquer tempo, fragilizando aquilo que a reforma diz querer atingir que é ampliar a qualidade do serviço público e melhorar a produtividade dos envolvidos. Contraditoriamente, porém, as evidências sinalizam que a vínculos precários correspondem respostas também precárias.

Os atuais servidores, por sua vez, já foram atingidos de diferentes formas. Em primeiro lugar, pela ausência de reajustes salariais; em segundo lugar, pelos efeitos da reforma da previdência, implementada neste governo, que reduziu-lhes a renda líquida, nos casos de aumento da alíquota a ser recolhida; em terceiro lugar , o Plano Mais Brasil, composto por três PECs  e que promete transformar o Estado brasileiro, em decorrência da redução de gastos públicos. Neste bloco está a PEC emergencial, que impede progressões na carreira, exceto as carreiras militar e policial, e a permanente ameaça de redução salarial em torno de 25%.Adicionalmente, a lei complementar 723 congelou salários, progressões e concursos até 2021, e nem mesmo os professores conseguiram ser poupados.

A exposição dos atuais servidores aumenta se considerarmos que grande parte da reforma virá por leis complementares e ordinárias, as quais exigem quórum bem mais leve para aprovação,  nas duas casas legislativas, comparativamente a uma mudança constitucional. Nada impede que proponham perdas importantes como: progressão por tempo de serviço, incorporação total ou parcial de remunerações obtidas pelo desempenho de cargos de confiança, férias-prêmio ou licenças-capacitação e ainda demissão por desempenho insuficiente, já que os critérios dessa avaliação ainda não são conhecidos.  A própria Frente Parlamentar da Reforma Administrativa propôs ao Congresso a incorporação de mudanças para esse grupo, chegando a sugerir regras de transição, informação disponível na mídia. Já o ministro da economia afirmou, no dia 13.11, que o governo só adotará novo programa de ajuda aos pobres se cortar os salários dos servidores[11]. Ou seja, chegamos ao paroxismo. Todas as necessidades da população e do país submetidas ao pagamento da dívida e os servidores públicos, por cumprirem o seu papel de atender à população, precisam ser punidos, constituem o “bode expiatório” da falta de compromisso de quem diz dirigir a economia brasileira neste momento tão delicado .

Subjacente a todas essas propostas que atingem os servidores públicos, está a falsa afirmação de que o Estado brasileiro é inchado, que os servidores são parasitas e “assaltam” o estado brasileiro. A discussão do tamanho do estado brasileiro já tem evidências mais do que suficientes de que é exatamente o contrário: o Estado brasileiro é enxuto, quando se fala  no número de servidores. Segundo a OCDE e o IBGE, o Brasil tem a menor participação de servidores públicos em relação à sua população ( 1,6%), enquanto nos países nórdicos, berços do Estado de Bem Estar Social esse percentual varia de 24,9% ( Finlândia) a 30% ( Noruega).

Lopez e Guedes(2019) elaboraram um estudo muito completo sobre a evolução do funcionalismo público, no Brasil, entre 1986 a 2017, utilizando dados da RAIS-TEM, incluindo servidores ativos civis e militares, integrantes das forças armadas, policiais e bombeiros. Os autores evidenciam que a evolução desse grupo manteve-se entre 15,1% e 19,5% do total de vínculos registrados na série. Em 1986, correspondiam a 15,3% do total; em 2017, correspondiam a 17,3%. Nesse período o número absoluto de servidores passou de 5,1 milhões, em 1986, para 11,4 milhões, em 2017, significando um aumento de 123%, em 32 anos, quando a população brasileira passou de  138 milhões para 209 milhões. Do total de servidores públicos, em 2017, apenas 10% eram servidores federais. O aumento do número dos servidores está concentrado no nível municipal, que cresceu 276% no período, por razões claras. A CF88 estabeleceu um pacto federativo entre os três entes: união, estados e municípios, pacto esse que transferiu para os municípios a execução de importantes políticas públicas, como educação e saúde. Esse fato significou um aumento importante de suas atribuições, exigindo também a ampliação do número de servidores e de suas competências. Esse estudo recente esclarece, mais uma vez, que não há crescimento desgovernado de emprego público no país e o que está em jogo é o atendimento pelo Estado dos serviços públicos necessários à cidadania.Em termos percentuais, isso significou um salto de 34% para 57% nos vínculos municipais; rebaixamento de 48% para 32% dos vínculos estaduais e rebaixamento de 18% para 10% nos vínculos federais. A insistência nesta questão se faz, a nosso ver, por genuína má fé. Um país de dimensões continentais e com uma população que lhe corresponde não pode prestar serviços públicos sem pessoas, enfim sem servidores públicos.

É necessário ainda registrar que a organização interna do Estado, por sua vez, estará na mão do Presidente da República que poderá, por decreto, extinguir órgãos, extinguir cargos, transformar cargos, o que na realidade vem sendo feito desde 2016, mesmo quando o presidente estava na fase interina. Naquele momento havia um certo vácuo jurídico. A partir da aprovação da PEC/2020, será constitucional.

Mais do que nunca, é imperiosa a compreensão de que a retomada da nossa democracia e do desenvolvimento brasileiro exige o comando de um Estado forte,  compromissado com os interesses dos cidadãos e ancorado num corpo de servidores públicos com esse mesmo compromisso. Todo governo, quando eleito, precisa ter a capacidade técnica de conceber, formular, implementar e avaliar suas ações. Os servidores são indispensáveis. Mesmo com o avanço tecnológico que tem ocorrido nos últimos dez anos, com a digitalização de processos, plataformas conjuntas de acompanhamento de projetos e ações, o servidor é, sim, a alma da administração pública.

3.A PEC 32/2020 diante dos princípios da Administração Pública Deliberativa

Como tenho argumentado ao longo do artigo, a PEC não trata de uma reforma administrativa em si mesma, mas da eliminação do Estado brasileiro, tal como o conhecemos. Não só de um possível Estado do Bem Estar Social, condição que, infelizmente, não conseguimos conquistar mas que esteve sempre presente, como uma utopia possível, e do qual nos aproximamos a partir da CF88, com a instituição da Seguridade Social e, mais recentemente, nos governos de 2003 a 2015.  Mas não é apenas isso, elimina-se também a noção de um Estado protetor de suas populações quando promove o desenvolvimento econômico e o emprego. Não é possível prever quais serão as consequências diretas e indiretas dessa ausência, podendo até promover o caos social e a intensificação da violência em todos os níveis na sociedade brasileira. No entanto, o Estado faz parte da materialidade do capitalismo. Sem ele não há capitalismo. Então, o que se pretende é dar fim  é a “esse” Estado que aos “trancos e barrancos” os brasileiros conseguiram construir. O que está em questão é quais serão os apropriadores do Estado e do Fundo Público que lhe dá sustentação, se essa mudança constitucional se concretizar.

Uma reforma administrativa precisaria ter como pressuposto a imprescindibilidade do Estado e dos servidores públicos. O servidor e o cidadão são partícipes inerentes ao processo de desenvolvimento. Para se propor uma reforma administrativa seria preciso alterar atitudes, funções, práticas administrativas, culturas institucionais, formações,  todas elas condizentes e dirigidas para a implementação das política públicas que dariam sustentação ao processo de desenvolvimento.Não é o que se encontra na PEC 32/2020. Na realidade, o Estado brasileiro e os seus servidores estão presos a modelos de “gestão” que assemelha esse Estado a uma firma[12]

Desde logo, é importante marcar que o Estado tem uma natureza própria, distinta da natureza da firma e é também movido por objetivos distintos. De forma definitiva: o Estado não é uma firma! A tentativa de mascarar essa diferença nos levou recentemente a erros graves, decorrentes da adoção, sem críticas, dos princípios da Reforma do Estado, implementada por Bresser Pereira, no governo FHC e popularizada, como visão gerencial do estado. Tal visão foi posta em prática por muitos governos e em alguns, com mais divulgação, como o de Aécio Neves, em Minas Gerais, tido como exitoso, e que serviu de inspiração para muitos municípios, incluindo Curitiba .A ENAP, no seu papel de formação dos servidores públicos federais, aprovados por concurso, acabou por promover a formação gerencialista, sem desenvolver uma postura crítica, tendo sido copiada pelas Escolas estaduais, com poucas exceções.

O Estado, como se sabe, é uma construção histórica e tende a representar a sociedade civil organizada. Ao longo do desenvolvimento do capitalismo ele assumiu formas distintas. Forneceu condições jurídicas para que a mercadoria e suas ulteriores determinações pudessem realizar os seus movimentos autônomos ( Galvan; 1984), regulou a relação capital/  trabalho, personificou o capital enquanto também produtor, transformou-se assim em instância necessária de criação e validação de formas de valorização  do capital e ainda, exerce o papel de regulador da relação entre os capitalistas (Carleial, 1986). Como discutido na introdução, a construção do estado social  em alguns paísessó foi possível porque o Estado passou a fazer uso da riqueza social, como apropriador de parte da mais valia, sob a forma de impostos, que constitui o fundo público.

Como diria Weber, o Estado, é o que é, pelos meios exclusivos que ele pode mobilizar para implementar suas ações. Desde Weber sabe-se que a possibilidade do estado conceber, implementar, monitorar e avaliar políticas públicas, com vistas a obter o desenvolvimento econômico e social de um povo, depende, em larga medida, de uma burocracia  tecnicamente preparada, hábil e com boa formação. A  burocracia é, muitas vezes vista, como algo necessariamente negativo sem a percepção de que todas as organizações sob o capital possuem uma burocracia, desde as firmas, o Estado e até mesmo a família. A questão é: qual é a burocracia que o Estado atual  precisa? Echebarria(2015; p.67) analisando as dificuldades da relação Estado-democracia na América Latina, afirmou: “o drama é que temos organizações patrimoniais mais do que burocracias weberianas.” E é o que a PEC32/2020, se aprovada, vai aprofundar.

Uma reforma administrativa entre nós exigiria uma crítica contundente aos princípios da proposta gerencialista.O recorte teórico metodológico que adotamos recai sobre as normas e princípios da democracia deliberativa que exige a participação da sociedade civil na condução da vida coletiva nas cidades. Submetida a esse princípio geral, a proposta da Administração Pública Deliberativa reconhece a importância técnica e política dos servidores públicos, inclui o cidadão na identificação das prioridades e condução das possíveis soluções aos problemas que se quer resolver, instituindo o saber coletivo  como indispensável para a construção das soluções[13].

Como não poderia deixar de ser, não há como estabelecer comparações entre a eficiência de uma firma inserida no mercado e o Estado enquanto representação da sociedade civil, permeado por diferentes interesses, responsável pela concepção e implementação de políticas públicas. Só a efetividade da política pública, quando resolve o problema que se propôs resolver, permite falar em eficiência do Estado.

A instituição de uma reforma administrativa exige a desconstrução da visão gerencialista, centrada na competência individual, hierarquia e autoridade. Na realidade o modelo gerencialista centrado nas competências individuais está fadado ao fracassso quando se trata da administração pública. O conhecimento que circula nesse âmbito é, ou precisaria ser, um conhecimento produzido coletivamente, pelos aprendizados produzidos ao longo das ações implementadas pelo Estado.  A proposta gerencialista promove uma divisão entre os servidores que supostamente sabem e os que não sabem, uma divisão do trabalho intra-institucional, promovendo concorrência e competição entre eles, o que só prejudica a ação coletiva. A fragmentação das formas de acesso ao serviço público, proposta pela PEC32/2020  tem o poder de produzir novas divisões internas, o que contribui para a perda de qualidade do serviço público e para o não engajamento do servidor. Ademais, é possível contar com o aumento da rotatividade no setor público, se essa proposta for aceita. Como é sabido a rotatividade tem um efeito danoso sobre os coletivos de trabalhadores que acabam por se enfraquecer. Tal como a maioria dos trabalhadores brasileiros pós-reforma trabalhista, os servidores públicos estarão mais sozinhos diante de um coletivo que se esvai. A prática da terceirização tem produzido esse efeito, o que será ampliado.

A burocracia exigida pelo Estado que enfrenta os desafios de uma país subdesenvolvido necessita de servidores conscientes do seu papel,  compromissados com a cidadania e com os objetivos da política pública. Cada um deles precisa saber pensar, opinar e decidir e não apenas obedecer ao chefe imediato.

Arendt (1999) descreve Eichmann, como um homem que esteve a serviço do nazismo e, em seu julgamento, em Jerusalém, afirmava reiteradas vezes que apenas cumpria ordens  de seu chefe. Arendt, analisa esse comportamento como o de um burocrata clássico que age de acordo com o que julgava ser o seu dever, cumprindo ordens superiores e mirando sua ascensão profissional .Arendt, argumenta que ao negar-se a pensar, o burocrata nega até a sua condição humana. Infelizmente, esse é o burocrata incentivado pelas práticas gerencialistas. Esse burocrata não atende às necessidades de um Estado com os desafios atuais.

A implementação de uma reforma administrativa centrada nos princípios deliberativos exige tempo, diálogo, discussões pois promove uma mudança cultural  significativa. A tônica central é a ampliação da confiança entre os grupos, a “quebra” da autoridade correspondente, a centralidade do diálogo que permita a negociação dos conflitos, o estabelecimento da cooperação, subordinando a competição incentivada pela divisão intra-institucional de competências. A complexidade dos desafios concretos colocados para a administração pública  impõe, além da competência técnica, a competência relacional para a persuasão dos diferentes grupos de trabalho no âmbito do Estado que relativizam a autoridade e experimentam a confiança no compartilhamento dos objetivos. Igualmente, o foco nos resultados sugerido pela PEC32/2020, precisa ser substituído pelo foco nos processos e nas pessoas. Todo esse processo permite enfrentar os conflitos ao invés de negá-los, atitude não rara no serviço público. Na realidade, é todo um esforço para congregar o grupo de servidores num direção única: o compromisso com o objetivo da política pública e o respeito à cidadania.

Comentários Finais

A PEC 32/2020 tem a mesma origem e filiação fiscalista de todas as reformas impostas à sociedade brasileira, no pós-2016, e completa a tarefa de inviabilizar o projeto inclusivo e cidadão da CF88. A PEC não propõe uma reforma administrativa e sim, a efetiva destruição do estado brasileiro como o conhecemos. A sua aprovação eliminaria, praticamente, todas as possibilidade de construção de um futuro minimamente compatível com as necessidades do desenvolvimento brasileiro e de redução de desigualdades regionais, promovendo um ato de violência contra os brasileiros. O Estado remanescente dessa aprovação estará desguarnecido dos meios mobilizáveis, como diria Weber, para a promoção das políticas públicas e portanto, do desenvolvimento.

Não existe exemplo histórico nem proposta teórica que dê sustentação a esse descalabro, em pleno século XXI. O texto da PEC 32/2020 não traz nem mesmo os estudos que a embasaram ( se é que existem), tem um traço profundamente autoritário dado pela aprovação apriorística da mudança constitucional sem que nada mais se saiba de sua formatação final. É uma mudança constitucional saída unicamente da cabeça dos que fazem, agora, o Ministério da Economia. Quais serão as carreiras tidas como típicas de Estado? Quais Instituições do Estado brasileiro serão consideradas dispensáveis e, portanto, passíveis de extinção, autocraticamente, pelo presidente da República? Quais poderão ser extintas e seus servidores remanejados para outros órgãos e funções? Por tudo que tem sido vivenciado no Brasil, após 2016, não é exagero afirmar que isto ocorrerá com a educação, as escolas, as Universidades, as Instituições de pesquisa, a Ciência e Tecnologia, as Instituições ligadas ao meio ambiente, os setores, enfim, que estão sendo reiteradamente achincalhados.

Toda e qualquer opinião crítica à condução do país, emitida por pesquisadores brasileiros, que apontem o retrocesso civilizatório em curso, é rechaçada veementemente. Como avançar na compreensão da realidade complexa de um país subdesenvolvido e na indicação de possibilidades a seguir, sem uma reflexão crítica? Não esqueçamos que o Brasil construiu, desde os anos 1970 ,um sistema de planejamento composto por Instituições de pesquisa, praticamente, em todos os estados da federação, medida muito necessária, diante  das profundas diferenças regionais reinantes até hoje. Poucas, porém, estão resistindo à sanha neoliberal.

A presença de profissionais compromissados com o Estado e com a cidadania que conheçam a história e trajetória de cada território amedronta os mandatários de plantão. Para esses, é melhor contratar consultorias privadas, não importa o preço, sem nenhum compromisso com os destinos de cada povo, pois isto vai possibilitar o esquecimento mais rápido dos erros e omissões cometidos nas ações empreendidas e …. garantir a ostentação de um selo de qualidade fruto de outros estudos feitos, igualmente, sem alma e sem compromisso. Enfim, o que fazer para impedir  mais essa catástrofe é uma pergunta cuja resposta interessa a todos os brasileiros.

As reformas  impostas à sociedade brasileira a distanciam cada vez da possibilidade de retomar a democracia perdida com o golpe de 2016; os empregos, com direitos trabalhistas, substituídos por ocupações precárias e intermitentes que nos levam ao trabalho jornaleiro do século XVIII, e agora querem retirar de nós, o Estado e as possibilidades de futuro. Segundo o IBGE, em 2018, 57,6% dos rendimentos domiciliares eram iguais ou inferiores ao valor do salário mínimo vigente. E com a pandemia agravou-se muito o quadro das famílias pobres. Qual futuro pode-se esperar para 212 milhões de brasileiros? As Instituições mostram-se fracas, e em especial, as duas casas legislativas escolheram ser cúmplices também da destruição do futuro dos brasileiros. Tudo indica que cada um de nós precisa assumir a responsabilidade de dizer um forte NÃO à PEC32/2020.

Texto publicado na AFIPEA

Foto: Ana Volpe/ Agência Senado

Liana Carleial é economista, professora titular em economia da UFPR, professora convidada do Programa de Pós-graduação em Direito(PPGD/UFPR) e pesquisadora do Núcleo de Direito Cooperativo e Cidadania (NDCC) da mesma universidade; é também pesquisadora associada ao GIREPS- Groupe de recherche interuniversitaire et interdisciplinaire sur l’emploi, la pauvreté et la protectionsociale da Universidade de Montréal. liana.carleial@gmail.com

Referências Bibliográficas

Arendt, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. SP, Companhia das Letras, 1999.

Brugué, Joaquim. Recuperar a política desde a deliberação. Revista RIO, Universidade Autônoma de Barcelona, no.7, 07, dezembro 2011.

Cardoso Jr. J.C. “Anacronismos da Reforma Administrativa: autoritarismo, fiscalismo, privatismo.” Brasília, DF, Afipea, Nota técnica 15.  92p. 2020

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Conjur – Consultor Jurídico. Entrevista do ex-presidente Temer, publicado no dia 14.09.2008

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Oliveira, Francisco de. “O surgimento do anti-valor: Capital, força de trabalho e fundo público. In: Francisco de Oliveira. Os direitos do antivalor: a economia política da hegemonia imperfeita. Petrópolis, RJ:Vozes, 1998.pp19-61.

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Weber, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília, Editora da UNB. 1991.


[1] CNI (2017)

[2]Carleial,  L. (2019)

[3]Carleial,L (2016)

[4] IPEA ( 2019)

[5]“Pulo do gato” usado aqui como uma referência a astúcia e rapidez, características  reconhecidas  nesse animal caseiro,  porém, é um termo usado também para referir-se a truques e/ou segredos.

[6]IPEA (2020) p.4

[7] Para uma discussão aprofundada ver: Gabardo. E.( 2009)

[8]É importante relembrar que a participação privada na prestação de serviços públicos está prevista na CF88 e já acontece desde os anos 1990, quando foram criadas as OS (Organizações Sociais não lucrativas). Segundo o IBGE, há 3013 serviços públicos de saúde administrados por terceiros nos 5.570 municípios brasileiros: 58% estão na mão de Organizações Sociais e 15% com empresas privadas. As OS estão em 24 estados brasileiros. Tudo isso feito sob a guarda da CF88, sem qualquer alteração constitucional. Ter essa participação privada, porém, é bem diferente da inclusão do princípio da subsidiariedade, como norma constitucional.

[9]www.portaldaindustria.com.br/estatisticas/desempenho-da-industria-no-mundo/

Consulta realizada no dia 05.11.2020.

[10]Para uma discussão muito completa desse aspecto e  dos anacronismos presentes na PEC32/2020 ver: Cardoso Jr.(2020).

[11]  www. brasi247.com.br/economia. Publicado em 13.11.2020

[12]Na nossa opinião, quando se trata de Estado, o mais acertado é chamar administração pública que permite considerar a  participação social através de conselhos, conferências etc. A palavra gestão é genérica e se aplica a todas as formas de organização das firmas,

[13]A administração pública deliberativa tem ainda pouca divulgação no Brasil. No entanto, é possível seus princípios com a  ajuda de alguns autores como Brugué( 2011) e Tarragó( 2015). A prática dessa proposta pode também ser avaliada a partir de uma experiência concreta apresentada em Carleial et alii(orgs) ( 2016).

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