É possível evitar uma “Grande Depressão” pós-pandemia? Por André Moreira Cunha e Andrés Ferrari

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A pandemia do COVID-19 abriu a temporada de revisões nas projeções sobre o crescimento das economias. Neste novo contexto, a prestigiosa revista The Economist indica uma contração de -2,2% no produto interno bruto (PIB)[1] global do corrente ano. A projeção anterior era de um crescimento de +2,3%. O Institute for International Finance (IIF), que representa 450 instituições financeiras de 70 países, segue na mesma direção: queda de -2,8% para a economia mundial em 2020 (antes previa crescimento de +2,6%). Ademais, para muitos analistas os impactos da crise não ficariam restritos ao corrente ano, mas se projetariam no futuro próximo[2].

Caracterizar-se-ia, assim, uma recessão mais intensa do que aquela derivada da crise subprime, logo transmutada em crise financeira global (CFG, 2007-2009). Esta é a opinião da diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional, Kristalina Georgieva. Ela espera a materialização do pior desempenho da economia global desde a crise de 1929, com 170 países apresentando variações negativas em seus respectivos produtos[3].

Tais projeções impressionam e assustam. Mas, será que, de fato, estamos diante de uma nova “Grande Depressão”? Em nossa perspectiva, este cenário não pode ser descartado a priori ou mesmo minimizado. Os riscos existem e estão se tornando cada vez mais claros. Porém, também entendemos que tal destino não está determinado tecnicamente pelas simulações dos modelos utilizados em bancos e instituições oficiais. O futuro poderá convergir com as projeções ou, ainda, ser muito pior ou relativamente melhor, a depender das decisões que tomarmos de agora em diante.

Do ponto de vista estritamente técnico, qualquer economista bem treinado sabe que fazer previsões não é algo trivial. As evidências sobre o tema sugerem um histórico que está longe de ser marcado pela precisão[4] obtida em outras áreas do conhecimento. Isto porque, diferentemente da realidade das ciências experimentais, a Economia lida com complexos processos sociais onde atores tomam decisões em reação às mudanças nas condições do ambiente[5].

Assim, para além dos aspectos técnicos, existe o mundo das decisões políticas que condicionam a evolução futura das decisões privadas. O exemplo da CFG é ilustrativo a este respeito. Em 2008, após a falência do Lehman Brothers, abriu-se a perspectiva de que a economia global viveria uma nova “Grande Depressão” aos moldes do que ocorrera depois da quebra da bolsa de Nova Iorque em 1929. Assim como agora, o pessimismo se fundava no olhar sobre o passado. Como sabemos, tal cenário não se concretizou, pois os governos atuaram para evitar a eclosão de uma espiral deflacionária de longa duração.

Qual foi o tamanho da ação dos atores estatais naquele momento? O FMI estimou que, em média, os países do G20 tiveram gastos discricionários cumulativos da ordem de 5% dos respectivos produtos entre 2008 e 2010[6]. Já o saneamento financeiro (capitalização das instituições financeiras, empréstimos de liquidez e garantias, compra de ativos “podres”, dentre outras medidas) gerou aportes equivalentes a 44% do PIB (média ponderada pelos respectivos produtos em paridade poder de compra) nas economias de alta renda e de 2% dos produtos nos países emergentes.

Diante dos riscos de uma “Grande Depressão” foram utilizados instrumentos monetários não convencionais como as taxas de juros nominais negativas e o afrouxamento quantitativo. Com isso, preservou-se a riqueza financeira. Assim, por exemplo, o balanço do FED passou de USD 700 bilhões (2007) para mais de US$ 4,5 trilhões (2017) em uma década. Em conjunto, FED, BCE, BoJ e Banco Popular da China expandiram a base monetária em US$ 15 trilhões. Nunca antes na história registrada o balanço dos bancos centrais cresceu de forma tão rápida e intensa.

Ideólogos libertários e economistas que professam a fé friedmaniana observaram que a maciça intervenção estatal não gerou qualquer pressão inflacionária significativa. Sim, a máquina de criar dinheiro foi acionada com uma volúpia nunca dantes imaginada, nem pelo mais delirante estatista, sem que a inflação ao consumidor ou as expectativas inflacionárias tenham sido perturbadas. É bem verdade que a expansão de liquidez estimulou o maior ciclo altista da história do mercado acionário, particularmente o estadunidense[7] . Só que isso era exatamente o que se desejava, vale dizer, usar o poder estatal de emitir moeda para evitar o “debt deflation” descrito por Irving Fisher e, assim, proteger os rentistas. Apoiados pelos seus poderosos bancos centrais, os donos da riqueza não criticaram o Estado intervencionista ou defenderam soluções exclusivamente de mercado para preservar o valor dos seus ativos.

Os bancos centrais e os Tesouros não mediram esforços para proteger os mercados financeiros. E os custos deste processo se fizeram sentir na economia e na política: a renda se concentrou ainda mais, e os ressentimentos com o establishment financeiro e político cresceram. Como bem observa Skidelsky (“Money and Government”, 2018, p. 216), as políticas pós-CFG foram fortes o suficiente para evitar uma nova Depressão. Todavia, elas se revelaram frágeis para relançar a economia mundial em uma trajetória estável e robusta de recuperação. Por isso mesmo, as estimativas do FMI no final de 2018 indicavam que naquele momento, dez anos depois da crise, economias que representavam 60% do PIB global ainda estavam crescendo abaixo da tendência pré-2008.

Assim, a pandemia em curso se manifesta em uma economia global mais desigual, endividada e menos dinâmica do que aquela que testemunhou o que, até então, era o maior choque financeiro e real desde 1929. Seus efeitos não deixarão muito espaço para o “mais do mesmo”, ou seja, para políticas suficientes apenas para proteger a riqueza financeira. Por sua própria natureza, a crise atual gera desafios de organização da produção, de financiamento e de redefinição das prioridades públicas e privadas que não cabem no escopo das políticas que vinham sendo adotadas até aqui.

É isto o que conclui o “Financial Times”, uma das principais vozes do establishment financeiro. Em editorial recente, ele sugere que a crise do COVID-19 revela os limites do contrato social contemporâneo. Este se manteve intacto, mesmo depois da CFG. Agora, segue o jornal, há que se rever o modelo de reformas anti-Estado e anti-sociedade adotadas nos últimos quarenta anos por políticos inspirados em Mises, Hayek, Friedman, Buchanan e seus herdeiros intelectuais. In verbis:

Reformas radicais – revertendo a direção das políticas que predominaram nas últimas quatro décadas – devem ser colocadas sobre a mesa. Os governos terão de aceitar um papel mais ativo nas economias. Eles precisam ver os serviços públicos como investimentos e não como passivos, além de tornar o mercado de trabalho menos inseguro. A redistribuição estará novamente na agenda; bem como o questionamento dos privilégios dos mais velhos e dos mais ricos. Políticas que até recentemente eram consideradas excêntricas, como a renda universal e a tributação da riqueza, deverão fazer parte do mix[8].

Em síntese: sim, a crise é grave; sim, é possível minimizar seus impactos e evitar uma nova “Grade Depressão”. Todavia, para que o cenário catastrófico gerado pelas projeções dos economistas não se concretize, há que se superar um obstáculo importante: a ilusão ideológica de que as soluções mercantis são suficientes para garantir que a sociedade se reproduza. “Vouchers” não irão recuperar a higidez das economias no longo prazo, mas sim a adoção de programas robustos de acesso à renda mínima, à educação pública, à saúde universal e gratuita, à seguridade social, à proteção ambiental e ao desenvolvimento cultural e tecnológico. Como nos alerta o Financial Times, chegou a hora de deixar de tratá-las como ônus, mas sim como investimentos em um futuro coletivo superior[9].

A “desmercantilização” dos aspectos mais essenciais para a preservação da vida e da sociedade não eliminará todos os espaços para o funcionamento da livre iniciativa. Pelo contrário, há que se preservar o dinamismo dos mercados e renovar a possibilidade de mobilidade social ascendente por meio do trabalho e do mérito. Este último é uma farsa quando não está ancorado em políticas que eliminem a desigualdade estrutural[10]. Por esta perspectiva, o Estado deixa de ser um “problema”, como sugerem os libertários, ou um demiurgo que resolverá todos os impasses sociais, como desejam seus primos-irmãos na extrema esquerda.

A presente crise nos reapresenta uma verdade historicamente estabelecida, mas que vem sendo obliterada pelos interesses rentistas e as suas ideologias libertárias: sem o Estado não há civilização e, muito menos, economias funcionais. Para preservar os mercados e a civilização, teremos de redesenhar a atuação estatal nos termos sugeridos pelo Financial Times. Com isso, as políticas públicas devem ser construídas e financiadas com o objetivo final de garantir que os indivíduos possam desenvolver plenamente os seus potenciais, em condições de liberdade e de segurança. Se é verdade que o Estado não consegue e nem deve resolver todos os problemas de uma sociedade complexa e descentralizada, também o é que sem ele esta mesma sociedade torna-se instável e disfuncional. Aceitar ambas as verdades seria um bom primeiro passo para evitar uma nova “Grande Depressão” e construir um futuro melhor.

Andrés Haines Ferrari, economista argentino, Professor Adjunto do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS. Doutor em Economia com ênfase em Economia do Desenvolvimento pela UFRGS.

André Moreira Cunha é Doutor em Economia pela Unicamp e Professor Associado do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS.

Foto: família desempregada, vivendo em condições miseráveis, em Elm Grove, Oklahoma, Estados Unidos. A Grande Depressão causou pobreza geral nos EUA e em diversos países do mundo. Crédito: Reprodução/ Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos.

[1] Ver: https://www.eiu.com/n/covid-19-to-send-almost-all-g20-countries-into-a-recession/.

[2] Dentre os países emergentes, os latino-americanos possivelmente estarão entre os mais intensamente atingidos. O IIF, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (IADB) e a CEPAL avaliam que a retração dos principais parceiros dos países latino-americanos, especialmente os Estados Unidos (EUA) e a China, associada às vulnerabilidades prévias e às possíveis reações dos governos locais, compõem um horizonte potencialmente explosivo. Por decorrência, não descartam contrações no produto regional da ordem de -5%. E, mais importante, temem que os anos seguintes carreguem o peso dos impactos e decisões correntes. O IADB oferece um leque de estimativas para o PIB entre 2020 e 2022 com variações médias do produto regional indo de -2,1% a.a. (cenário moderado) até -4,8% (cenário extremo). Ver, por exemplo: “Policies to Fight the Pandemic”, 09/04/2020 (https://publications.iadb.org/publications/english/document/2020_Latin_American_and_Caribbean_Macroeconomic_Report_Policies_to_Fight_the_Pandemic.pdf); “América Latina y el Caribe ante la pandemia del COVID-19: efectos económicos y sociales” (https://www.cepal.org/es/publicaciones/45337-america-latina-caribe-la-pandemia-covid-19-efectos-economicos-sociales).

[3] Ver: “Confronting the Covid-19 Crisis”, 09/04/2020 (https://www.imf.org/en/News/Podcasts/All-Podcasts/2020/04/09/md-curtain-raiser-2020-sms).

[4] Ver, por exemplo, Eicher, T. S. et al. “Forecasts in Times of Crises”, IMF Working Paper 18/48, 2018; e “GDP predictions are reliable only in the short term” (https://www.economist.com/graphic-detail/2018/12/15/gdp-predictions-are-reliable-only-in-the-short-term); “The accuracy of long-term growth forecasts by economics researchers”, de Masayuki Morikawa (https://voxeu.org/article/accuracy-long-term-growth-forecasts-economics-researchers).

[5] O trabalho de William Nordhaus, ganhador do prêmio Nobel e um dos mais respeitados especialistas em impactos econômicos de longo prazo das mudanças climáticas, nos mostra que a incerteza na projeção sobre o comportamento futuro das economias é maior do que usualmente reconhecem os economistas. Ver: “Uncertainty in forecasts of long-run economic growth” (https://www.pnas.org/content/pnas/115/21/5409.full.pdf).

[6] Ver o balanço do Fundo sobre os dez anos da CFG em “World Economic Outlook”, October 2018, capítulo 2.

[7] Ver: https://www.forbes.com/sites/sergeiklebnikov/2020/03/11/bear-market-dow-drops-over-1400-points-ending-longest-bull-market-in-us-history/#218c50e86ae4.

[8] Tradução livre do original: “Radical reforms — reversing the prevailing policy direction of the last four decades — will need to be put on the table. Governments will have to accept a more active role in the economy. They must see public services as investments rather than liabilities, and look for ways to make labour markets less insecure. Redistribution will again be on the agenda; the privileges of the elderly and wealthy in question. Policies until recently considered eccentric, such as basic income and wealth taxes, will have to be in the mix”. Ver o editorial em: “Virus lays bare the frailty of the social contract”, https://www.ft.com/content/7eff769a-74dd-11ea-95fe-fcd274e920ca.

[9] Um exemplo de reflexão e de proposição neste sentido está em “A progressive European wealth tax to fund the European COVID response”, Camille Landais, Emmanuel Saez, Gabriel Zucman em 03/04/2020 (https://voxeu.org/article/progressive-european-wealth-tax-fund-european-covid-response).

[10] Detalhes em Thomas Piketty, “Capital and Ideology”, 2020; e Anthony B. Atkinson “Inequality: What Can Be Done?”, 2015.

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