Brasil, México, uma pandemia devastadora que questiona, por Pierre Salama

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Texto redigido com base no livro recentemente lançado “Contágio Viral, Contágio Econômico, Riscos Políticos na América Latina“, Editora Contracorrente.

Todos os países latino-americanos sofreram e continuam sofrendo fortemente os efeitos da pandemia, tanto a nível econômico como a nível social. Suas vulnerabilidades, para alguns escondidas, se tornaram evidentes. A pandemia amplificou uma crise existente em 2019 (Argentina e México) e latente (Brasil), que se manifestou, ao longo do tempo, através de uma tendência a estagnação economia e a uma baixa mobilidade social. Para todos ela foi, e é, uma revelação de problemas estruturais. [1]

I. A pandemia e a amplificação de uma crise existente ou latente

1. Uma tendência a estagnação econômica desde os anos 1980

As economias latino-americanas são ao mesmo tempo frágeis e vulneráveis. Em geral, 1) a reprimarização acentuou o comportamento rentista dos empresários pré-existentes. A taxa de investimento é baixa, enquanto a financeirização e desindustrialização são elevadas. Isso diz respeito particularmente à Argentina, ao Brasil e, em menor medida, ao México, sendo a mão-de-obra “exportada” a sua matéria prima.[2]

No México, o binômio industrialização (por exportação)-desindustrialização (pelo mercado interno) não produz os feitos esperados em termos de crescimento. Os motivos são a retirada do Estado da Economia e alguns efeitos, pouco relevantes, de cluster. O que resulta em uma industrialização apenas por “montagem”, incapaz de compensar os efeitos deletérios da desindustrialização na indústria destinada ao mercado interno.  

2) A altíssima volatilidade tem efeitos negativos sobre o crescimento. O “stop” deixa marcas profundas. A recuperação, o “go”, não permite uma retomada rápida nos níveis anteriores à crise . A volatilidade está presente em todos os países, mas particularmente na Argentina.

3) Finalmente, uma das causas mais importantes que explica essa letargia das economias latino-americanas nos últimos trinta/quarenta anos é a grande desigualdade de renda e riqueza.

Tabela 1: Causas da tendência à estagnação da taxa de crescimento do PIB

Tabela construída por PS, para mais detalhes, consulte nosso livro, 2020, op.cit., segundo capítulo

É nesse contexto de estagnação que surgiu a pandemia no Brasil e no México.

2. Um impressionante cortejo de mortos

Os presidentes do Brasil e do México subestimaram a pandemia. As políticas econômicas que implementaram são, ao mesmo tempo, semelhantes e diferentes. Semelhantes porque buscam respeitar as principais regras de equilíbrio macroeconômico: o controle dos gastos públicos – o teto brasileiro[3] – diminui o aumento da dívida pública, ao mesmo tempo que a crise reduz mecanicamente as receitas públicas do México[4]. Trata-se de uma política surrealista se a comparamos aos estímulos a demanda e a ampliação dos déficits públicos levados a cabo em quase todos os países avançados. Diferentes porque a política seguida no Brasil buscou manter a demanda dos mais pobres, pelo menos por alguns meses, com o auxílio emergencial, desacelerando assim a queda do PIB em 2020. Essa não foi, ou foi em pouquíssima medida, o caso da política econômica implementada pelo presidente do México. Paradoxalmente, o Brasil teve uma política pró-pobre mais “progressista”[5], pelo menos por alguns meses, do que o do México… embora tenha mantido uma política ortodoxa de privatizações e de limitação do gasto público em relação ao PIB (o teto). Contudo, o México empreendeu reformas estruturais relativamente importantes no que se refere a energia fóssil (petróleo) e a eletricidade, bem como limitou outsourcing (terceirização) [6].

Diversas variáveis ​​explicam o nível de contaminação e a taxa de letalidade: 1) o tamanho dos gastos públicos e privados com saúde e o acesso mais ou menos gratuito ao sistema de saúde. As despesas com saúde variam conforme o país. No México elas são extremamente baixas se comparadas com as do Brasil[7]; 2) a atitude dos governos em relação a pandemia. Ela foi profundamente subestimada nesses dois países, mais no Brasil do que no México. Nas políticas adotadas pelos governadores dos estados (Brasil e México são federações), os governadores foram combatidos pelo Presidente da República no Brasil; 3) o cumprimento das regras de distanciamento social, de higiene e o uso de máscara são muito difíceis de implementar nos bairros mais pobres, por serem superlotados e, por vezes, não terem acesso a água; 4) cumprir o confinamento é muito difícil quando a necessidade de trabalhar é imperiosa. Dada a extensão das desigualdades sociais e a dificuldade de acesso à uma moradia digna, se proteger do vírus torna-se difícil para grande parte da população. Foi nessa dificuldade que o presidente brasileiro “surfou”, com esperança de encontrar apoio junto a parcela mais  vulnerável da população.

As diferentes ondas não causaram os mesmos efeitos em termos de morte, por vários motivos: o grau de contaminação não é o mesmo para todas as variantes, as últimas mutações do vírus se revelaram mais contagiosas. O respeito as barreiras sanitárias e o uso de máscara aumentaram com o tempo e, embora ainda seja amplamente insuficiente, a porcentagem de pessoas vacinadas também aumentou. Isso explica por que a taxa de letalidade (porcentagem de mortes pelo número de infectados) está caindo consideravelmente no México e no Brasil.

Tabela 2: As três ondas da pandemia no México

Fonte: dados da secretaria de saúde, organizados por Our World in Data: www.ourworldindata.org e por Lajornada 27 de agosto de 2021. Os dados estão em média móvel para 7 dias.

Tabela 3: Avaliação da pandemia em alguns países da América Latina no dia 4 de agosto de 2021, mortes por milhão de habitantes

Fonte : TResearch MX, os dados do México foram reavaliados pelo INEGI. Os disponibilizados pela Secretaria de Saúde apontam 242.547 óbitos, o INEGI corrige esse número, acrescentando, para 2020, mais 52.236 óbitos, o que leva a um total de  294.781[8]: https://drive.google.com/file/d/13vwog2wWy1wEiY9zDDUAzR2mHgMh8NYU/view

No final de agosto, a vacinação completa (duas doses) [9] estava alta em dois países da América Latina: Chile e Uruguai (75,94% e 71,02% respectivamente, no dia 27 de agosto de 2021). Um pouco mais baixa no Equador (42,7% em 25/08). A vacinação completa encontra-se em um nível medíocre na Argentina (30,24%), no México (29,08% em 25/08), no Brasil (27,52% em 26,08) e no Peru (25,97% em 24,08), país com o maior número de mortes por milhão de habitantes. Ela é igualmente baixa em outros países como: Paraguai (22,4% em 20/08), Colômbia (28,28% em 24/08), Cuba (27,95% em 24/08) e surpreendentemente baixa na Costa Rica (19,7% em 23/08). Na mesma época a taxa de vacinação era de 68,69% na Espanha, 63,92% na França, 63,62% na Grã-Bretanha, 60,85% na Alemanha e surpreendentemente apenas 52,16% nos EUA.

II. Algumas lições da crise: a informalidade e o desalento (saída do mercado de trabalho)

Uma das lições importantes da crise atual é como se modificou a relação entre desemprego, população economicamente ativa, empregos formais e empregos informais. Essa relação vem se transformando desde a década de 1990 no Brasil[10] e no México, mas essa transformação não foi muito visível. Com a profunda crise de 2020, essa transformação se tornou muito mais evidente. Ficou claro que o setor informal não é uma “esponja”, um refúgio para os que ficam desempregados durante uma crise econômica[11]. É apenas e marginalmente um substituto para o desemprego crescente.

Quadro 1: E a informalidade?  
Em geral, a informalidade tem várias origens na América Latina: 1) a primeira é resultado de relações de produção específicas. O autoritarismo-paternalismo prevaleceu até recentemente no campo e nas pequenas cidades. O prestígio e o favorecimento regem o emprego[12], especialmente nas pequenas empresas: o empregado se sente obrigado para com o empregador. Ainda que este não declare, pagam-lhe mal e lhe impõe condições de trabalho muitas vezes indecentes. A contrapartida desse autoritarismo é o paternalismo, o empregador tem a obrigação “moral” de cuidar de seu empregado quando ele está doente. Com o crescimento generalizado do mundo comercial, essa contrapartida vai desaparecendo gradativamente, permanecendo o aspecto informal, ilegal vis-à-vis o código trabalhista, previdenciário e tributário. 2) A taxa de investimento insuficientemente somada ao crescimento demográfico e a migração do campo para as cidades são uma segunda fonte de informalidade. A busca por empregos de subsistência, mesmo de sobrevivência estrita, está crescendo e com ela a informalidade. Portanto, pode-se dizer que não existe um setor informal per se, mas um entrelaçamento de atividades formais e informais (empregos), apoiadas umas sobre as outras. 3) Novas formas de informalidade aparecem associadas ao surgimento de novas tecnologias. Graças à Internet e às plataformas virtuais, desenvolveram-se novas formas de trabalho, um fenômeno que ficou conhecido como “uberização do emprego”, o trabalhador com estatuto de autônomo, trabalha em grande precariedade no que diz respeito a proteção social, na maioria das vezes extremamente débil. Enfim, à medida que o mercado e as relações capitalistas se desenvolvem, a informalidade muda e a formalidade também. Em outras palavras, a informalidade se torna mais “porosa”. Ela se aproxima da formalidade. A diferença entre empregos formais e informais diminui. Em menor proporção no México do que no Brasil, os trabalhadores informais podem se beneficiar de programas de proteção social sem terem contribuído, seja por meio de medidas legislativas, que permitem que as microempresas se declarem sem ter que contribuir (MEI no Brasil), seja por meio de políticas nacionais, por exemplo, de acesso à saúde no Brasil. Por outro lado, os empregos formais, muitas vezes, são flexíveis e precários e, portanto, se aproximam da flexibilidade de jure (mas não necessariamente de fato) dos empregos assalariados informais.

A crise de 2020 mostra, claramente, que prestar atenção nos níveis de informalidade e desemprego apenas durante uma crise pode ser enganoso. É necessário considerar as três variáveis ​​mencionadas. As últimas crises, particularmente a de 2020, mostram que a informalidade não é um substituto para atenuar o efeito do desemprego. Este cresce durante uma crise e demora para diminuir durante uma retomada. Enquanto, a população economicamente ativa diminui de forma absoluta e relativa (se comparada à população com mais de 15 anos). No final, a informalidade, longe de aumentar, diminui durante a crise e a formalidade aumenta relativamente.

1. No Brasil, as crises de 2015-2016 e 2020 foram importantes em termos de magnitude (-3,8% em 2015 e -3,6% em 2016 e -4,1% em 2020). A crise de 2015-2016 não experimentou uma recuperação significativa, ao contrário das crises anteriores. A de 2020 deu esperanças de uma recuperação em V, mas a partir do último trimestre de 2020 essa recuperação perdeu fôlego e as perspectivas para 2021 não são favoráveis. Isso se deve não apenas as novas ondas da pandemia e suas consequências negativas sobre o comportamento dos investidores, mas também a duas “surpresas” que dizem respeito a evolução do número inativo e de informais.

Segundo o estudo de Corseuil et al do IPEA[13], as duas crises recentes se diferenciam pela magnitude das variações no mercado de trabalho. A porcentagem de empregados na população em idade ativa caiu de 56,2%, no primeiro trimestre de 2015, para 53,1%, no primeiro trimestre de 2017 (crise 2015-2016)[14]. Entre o primeiro trimestre de 2020 e o terceiro trimestre de 2020, esse percentual caiu de 53,5% para 47,1%. A população desempregada durante a crise de 2015-2016 aumentou de 4,8% para 8,5%. Durante a crise de 2020, a porcentagem da população desempregada em relação a população em idade ativa aumentou pouco, de 7,5% para 8%. A grande diferença entre as duas crises está no percentual de inativos (fora do mercado de trabalho): enquanto nos mesmos períodos, esse percentual é relativamente estável durante a primeira crise (em torno de 38,5%), aumenta de 39% para 44,7% em 2020, um aumento considerável para tão pouco tempo. Uma proporção significativa e crescente da população em idade ativa sai, portanto, do mercado de trabalho. A queda da população economicamente ativa explica, em parte, a manutenção da taxa de desemprego em um patamar elevado no terceiro trimestre de 2020, ou seja, 14,6% da população economicamente ativa.

Gráfico 1: Porcentagem da população empregada, inativa e desempregada na população em idade ativa, 2013-2020

Fonte: Corseuil C.H. et alii, op.cit. p.8

Quando analisamos os fluxos de entrada, trimestre a trimestre, observamos que os fluxos de entrada de ocupados em relação ao de desocupados (desempregados) diminui e que os de inativos em relação aos desocupados também diminuem em 2020, ao contrário do que se observa ao longo da primeira crise considerada aqui. A tendência de redução desses fluxos explica o aumento na proporção de pessoas inativas.

Segunda surpresa, o índice de informalidade está caindo e, com a recuperação, volta a crescer.

Gráfico 2: Variação da população ocupada e empregos informais, 2013-2020

Fonte: Corseuil et alii op.cit, p.12

Segundo a doxa, uma crise econômica deve levar a um aumento do índice de informalidade decorrente, em grande parte, das demissões de trabalhadores com carteira assinada e da dificuldade deles encontrarem outro trabalho formal. Não é esse o caso aqui. A crise de 2020 não foi acompanhada de um aumento da informalidade, pelo menos não nos primeiros meses. Vimos que isso leva a um aumento dos inativos, com sua retirada do mercado de trabalho, e a uma diminuição da informalidade. De modo que a informalidade caiu mais (- 15,55%) do que a população ocupada (- 9,62%).

Em um estudo muito interessante, Roubaud F. e Razafindrako M. (2021) mostram que entre o quarto trimestre de 2019 e o segundo trimestre de 2020, segundo dados da PNAD, os empregos formais caíram – 6,7%, os do setor informal – 19,1% e, no mesmo período, os inativos aumentaram 18,9%. As demissões de trabalhadores com carteira assinada não levaram ao aumento da taxa de desemprego, que já era elevada antes da crise, nem ao aumento da informalidade, com uma parte deles tornando-se inativos. Uma parcela dos trabalhadores informais também abandona a busca de emprego e se retira do mercado de trabalho. Podemos considerar que esse movimento se explica tanto pelas poucas perspectivas de conseguir um emprego, dadas as dimensões da crise e suas peculiaridades, quanto pelo pagamento do auxílio emergencial[15]. Com a melhora das perspectivas de emprego no terceiro trimestre de 2020 e o fim do auxílio, observa-se um aumento do emprego informal, um pouco mais rápido do que o da população ocupada. A desaceleração econômica no quarto trimestre de 2020 e no primeiro trimestre de 2021 poderia reverter essa tendência. Contudo, a probabilidade de isso acontecer é pequena dado que a proposta de relançamento do Auxiliar Emergencial prevê valores bem menores do que os de 2020.

Em suma, considerando as seguintes variáveis: taxa de desemprego, população economicamente ativa, taxa de emprego formal e informal; observamos no Brasil que a taxa de desemprego, já elevada às vésperas da pandemia, aumentou pouco. A população economicamente ativa diminui drasticamente para aumentar novamente com a recuperação econômica, os empregos informais diminuíram acentuadamente mais do que os empregos formais durante a crise. A queda acentuada dos empregos informais não se traduziu, portanto, em aumento significativo da taxa de desemprego, mas sim em saída do mercado de trabalho e em demissões de trabalhadores formais, o que pouco ou nada favorece a busca por empregos informais, ao contrário da tendência que poderíamos ter esperado.

2. No México, desdobramentos semelhantes podem ser observados durante a crise de 2020 no que diz respeito a população economicamente ativa, a informalidade e a taxa de desemprego. A população economicamente ativa passa da média de 60%, em 2019, para 47,2%, em abril de 2020, o que representa uma queda de 12,8 pontos percentuais[16]. Já em 2021, a PEA cresceu acentuadamente com a recuperação econômica, atingindo 59,2% em abril de 2021.

Da mesma forma, a informalidade caiu significativamente em 2020 e voltou a aumentar em 2021, atingindo níveis pré-crise, em torno de 56% da população ocupada. No entanto, a proporção de trabalhadores subempregados em relação à população ocupada aumentou significativamente e, com a recuperação em 2021, passou a diminuir novamente.

Contudo, ao contrário do Brasil, a taxa de desemprego mexicana é baixa. Foi, em média, apenas 3,2% em 2019, aumentou para 4,7% em abril de 2020 e, em seguida, caiu para 4,3% em julho de 2021 (ou seja, 1 ponto percentual a menos do que em julho de 2020). Em outras palavras, a taxa de desemprego no México aumenta com a crise, mas permanece em um nível baixo. Já a taxa de subemprego em relação à população ocupada aumentou mais do que a taxa de desemprego, passando de, em média, 6,9%, em 2019, para 13,2%, em abril de 2020. A qualidade dos empregos formais, assim como ocorre no Brasil, está piorando como no Mexico, em média o nível de renda do trabalho caiu e as desigualdades aumentaram.

A crise resultou numa queda da população economicamente ativa em 2020 que, com a recuperação, voltou a aumentar. Resultando, portanto, em uma saída de trabalhadores do mercado de trabalho, mais especificamente daqueles que tinham empregos informais, e numa retomada dos empregos informais seguida de uma retomada dos empregos formais. Com a recuperação econômica a partir de 2021, observamos tanto uma queda na taxa de desemprego, como uma volta de trabalhadores ao mercado de trabalho com o aumento da população economicamente ativa. Em abril de 2020, a perda de empregos foi de 12,5 milhões. Entre maio de 2020 e julho de 2021, foram criados 13,1 milhões de empregos com, no entanto, um aumento muito significativo do emprego informal, que correspondeu a 98% dos 1,3 milhão de empregos criados em julho de 2021… (fonte: INEGI e El Economista 27 agosto[17]).

Para entender essas mudanças, três fatores devem ser levados em consideração: 1) a atitude dos governos em relação à informalidade: as mudanças legislativas que visam formalizar os empregos informais, ao permitirem que os trabalhadores não contribuam para a previdência social, podem levar a um aumento nos salários das categorias mais baixas; 2) a extensão da crise; 3) a política de apoio à demanda.

O PIB per capita caiu drasticamente em 2020 no México (- 9,2%) e diminuiu bem menos no Brasil (- 4,8%). Essa queda foi particularmente pronunciada no segundo trimestre de 2020 no México (-18,8%). Como observamos, o suporte à demanda desacelerou a queda do PIB no Brasil. Já no México, tal suporte tem sido muito fraco.

Por fim, o que diferencia o Brasil do México é a taxa de desemprego, alta para um e baixa para o outro. Contudo, no Brasil, como essa taxa não aumenta muito durante a crise e a retração do mercado de trabalho é significativa, ocorre um aumento da pobreza.

3. A taxa de pobreza aumenta

Nestes dois países, tanto a pobreza como a extrema pobreza aumentam e o mesmo acontece com a desigualdades de renda.

No Brasil, a pobreza voltou a aumentar com a crise de 2015-2016. Em 2019, as taxas de pobreza e extrema pobreza eram de 24,8% e 6,6%, respectivamente. O chamado auxílio emergencial, que entrou em vigor em 2020, vai compensar – e para algumas categorias mais do que compensar – a queda na renda do trabalho devido à crise de 2020. Contudo, esse auxílio de renda, que se destinava as categorias pobres e modestas, foi temporário e sua reedição mais fraca (R$ 250 contra R$ 600 anteriormente, com um escopo que também foi reduzido). Desse modo, as taxas de pobreza aumentaram significativamente, como pode ser visto na tabela abaixo, e ficaram bem acima do que eram antes da pandemia (Luiza Nassif-Pires et alii, op. cit). As taxas observadas e previstas para os negros, e, particularmente, para as mulheres negras, são muito mais altas do que antes da pandemia e bem acima das taxas de pobreza para os brancos. De acordo com esse estudo, as mulheres negras tinham uma taxa de pobreza extrema de 9,2% contra 3,5% entre as mulheres brancas. Essa taxa aumentou para 12,3% e 5,8%, respectivamente.

Tabela 4: Evolução da pobreza durante a pandemia no Brasil

Fonte: Luiza Nassif-Pires, Luiza Cardoso e Ana Luisa Matos de Oliveira, 2021, « Genero e raça em evidencia durante a pandemia no Brasil: o impacto do auxilio emergencial na pobreza e na extrema pobreza » in Centro de pesquisa em macroeconomia da desigualdades, nota técnica n°10, 1-8 : https://madeusp.com.br/wp-content/uploads/2021/04/NPE-010-VF.pdf

De acordo com o CONEVAL (Consejo Nacional de Evaluación de la Política de Desarrollo Social), o nível de pobreza[18] no segundo trimestre de 2021 foi 2,9 pontos percentuais acima do nível pré-pandêmico. No pico da pandemia ele atingiu 44,3% da população, depois caiu, graças ao aumento da renda do trabalho e da massa salarial após o aumento dos salários, dos empregos e, em pequena medida, dos programas sociais. No entanto, nos últimos doze meses, de julho de 2020 a julho de 2021, o aumento da renda do trabalho se concentrou principalmente no primeiro quintil (o mais pobre) – 78% dos empregos criados são empregos informais, assalariados e não assalariados (INEGI e El Financiero de 20 de agosto). Esta evolução reduziu, por um lado, a taxa de pobreza, mas por outro é um indicativo da deterioração das condições de emprego, mais de 24,5 milhões de pessoas ganham menos de dois salários-mínimos por mês – sendo este equivalente em 2020 a 51,6 euros – 5,5 milhões ganharam de 2 a 3 salários-mínimos, 2,5 milhões de 3 a 5 salários-mínimos e 0,8 milhão mais de 5 salários-mínimos (sendo que a renda de 4,4 milhões de pessoas não foi especificada). O rendimento das famílias do 10º decil (os mais ricos) diminuiu – 9,2% entre 2018 e 2020, os do 1.º decil por outro lado aumentaram 1,3%, mas os do 2º decil diminuíram – 2,7%. No final, os rendimentos do 10º decil permanecem mais de 16 vezes superiores aos do 1º decil, o que indica a fragilidade das transferências de renda para os mais pobres (INEGI e El economista 18 de agosto).

Tabela 5: Evolução da pobreza durante a pandemia no México

   Fonte: CONEVAL, https://www.coneval.org.mx/Medicion/Paginas/PobrezaInicio.aspx

Conclusão

A pandemia não provocou a crise que todos os países latino-americanos estão vivendo, ela a precipitou. Ela desvelou as causas estruturais de sua longa estagnação econômica: profundas desigualdades de renda e riqueza, comportamento rentista dos investidores, reprimarização da maioria dos países nos últimos vinte anos, volatilidade significativa em suas taxas de crescimento (apesar de um grau de abertura ao comércio internacional menor que o observado nas economias asiáticas emergentes) e o aumento da dependência do México de transferências de divisas de seus imigrantes nos Estados Unidos.

No entanto, esta crise levanta questões do ponto de vista econômico e político.

Os trabalhos informais não desempenham mais o papel frequentemente atribuído a eles pela doxa. Em vez de aumentar em tempos de crise, os empregos informais diminuem em termos relativos e absolutos e diminui, também e sobretudo, a população economicamente ativa. Isso é surpreendente em países onde o seguro-desemprego é raro e pouco significativo para as pessoas de baixa renda. No Brasil, em tempos de crise, a possibilidade de encontrar um emprego no setor informal são raras. Nesse contexto, o auxílio emergencial explica, em parte, as pessoas que se retiraram do mercado de trabalho. Em países como o México, onde as transferências são muito menores, a retirada parcial do mercado de trabalho levanta ainda mais questões. O aumento das transferências feitas pelos trabalhadores mexicanos que vivem nos Estados Unidos (remesas) [19] poderia explicar por que a pobreza não diminuiu mais que a informalidade e a população economicamente ativa em 2020, com a crise econômica. Embora não tenhamos uma avaliação precisa, também é possível que o dinheiro proveniente do narcotráfico tenha amenizado os efeitos da crise sobre o emprego e a renda de parte da população pobre.

Esta crise também levanta questões do ponto de vista político. O que diferencia as presidências do México do Brasil neste período é que: a primeira é nacionalista e promove medidas a favor de setores estratégicos para protegê-los do desmantelamento após privatizações previstas pela presidência anterior para favorecer interesses estrangeiros; a segunda é a favor de privatizações custe o que custar em termos de independência nacional. O Brasil implementou uma política de apoio maciço, mas temporário, às categorias mais desfavorecidas, o México pouco ou nada fez em nome do respeito aos equilíbrios macroeconômicos.

A presidência mexicana, no entanto, recebeu um apoio muito significativo da população[20]. A do Brasil defende temas de extrema direita sobre questões sociais (negros e homossexualidade), segue uma política de desmantelamento da educação, busca controlar o conteúdo ensinado nas escolas, critica duramente as instituições nacionais e está experimentando um declínio acentuado em sua popularidade. Nossa análise comparativa destacou esses paradoxos.

Foto: Agência Brasil

Pierre Salama é professor emérito Universidade de Paris XIII.


[1] Este assunto foi desenvolvido em Salama P. (2020) Contagion virale, op.cit., Capítulo 2, intitulado “Pourquoi les pays latino-américains souffrent ils d’une stagnation économique sur longue période?” p. 43-95. Ver também Cepal, 2021, La paradoja de la recuperación en América Latina y el Caribe, https://www.cepal.org/es/publicaciones/47043-la-paradoja-la-recuperacion-america-latina-caribe-crecimiento-persistente

[2] As transferências dos imigrantes mexicanos (remesas) para as suas famílias equivalem, de fato, a renda do ponto de vista macroeconômico, tal como a venda de matérias-primas, cujos efeitos não favorecem a indústria devido à valorização da taxa de câmbio real que eles causam.

[3] Mas também a lei de responsabilidade fiscal e a regra de ouro. Todas essas restrições são, às vezes, contornadas por truques de apresentação ou adiamentos (“pedalas”, mas também precatórios: pagamento de bônus em vez de aumentos de salários no serviço público, que são pagos com prazos indefinidos e sobre fundos inexistentes que podem vir de privatizações futuras). Isso explica por que pode haver déficits públicos consideráveis ​​e aumentos acentuados de despesas como em 2020, apesar dessas restrições. A dívida pública bruta aumentou 14,5 pontos percentuais do PIB entre 2019 e 2020, passando de 74,3% para 88,8%. Deve cair um pouco em 2021. Fonte: https://sisweb.tesouro.gov.br/apex/f?p=2501:9::::9:P9_ID_PUBLICACAO:38868.

[4] No México, as restrições ao déficit público são muito mais respeitadas do que no Brasil. Medida como porcentagem do PIB (base 2103), a dívida pública era de 45,1% em 2019. Ela aumentou para 52,1% em 2020, ano de crise profunda, e depois caiu. Em 2021 deve ser de 49,7%, graças à recuperação econômica. Fonte: https://www.secciones.hacienda.gob.mx/work/models/estadisticas_oportunas/comunicados/ultimo_boletin.pdf.

[5] Colocamos deliberadamente o adjetivo “progressista” entre aspas. A decisão de estabelecer um apoio massivo, mas temporário às categorias mais desfavorecidas é provavelmente explicada pelos riscos políticos de uma recusa ao confinamento por parte do governo (“quem se recusa a trabalhar não tem que ser pago”) em oposição às decisões de vários governadores. Para limitar esses riscos, o congresso aprovou essa ajuda de emergência e várias emendas a tornaram mais generosa do que o esperado.

[6] Essas reformas encontram forte oposição de grande parte dos empregadores e provavelmente estão na origem de saídas líquidas de investimentos em carteira. De acordo com o Banco do México, as saídas líquidas de investimentos em carteira somaram -4,8 bilhões em 2020 e 12,7 bilhões de dólares no primeiro semestre de 2021. O investimento estrangeiro direto caiu na maioria das economias semi-industrializadas, mais especificamente 23,2% durante o primeiro semestre de 2021. Eles somaram 18,5 bilhões de dólares, menos do que as receitas sob remesas.

[7] Ver por exemplo: Cetrangolo O. y Goldschmit A. (2019) Nessidades de regulación del sector privado en salud en América Latina, Documentos de trabajo del IIEP –UBA, n°40, 1-26, Cetrangolo O. y Goldschmit A., abril de 2020, blog Alquimiaseconomicas (disponível na internet) e o capítulo 3 do nosso livro op.cit.

[8] Esses dados devem ser considerados com cautela para o conjunto dos países latino-americanos. Eles são mais ou menos subestimados, dependendo do país e da confiabilidade de seus sistemas censitários. Uma nova reavaliação feita no final de agosto no México mostra que existe uma diferença significativa (52,9%) entre o número de óbitos estimados, considerando todos os dados de mortalidade (pouco mais de 940.000), e o número de óbitos observados entre janeiro de 2020 e março de 2021 (1.437.000). Veja INEGI e El Financiero de 26 de agosto de 2021.

[9] https://www.sortiraparis.com/actualites/coronavirus/ a partir dados da John Hopkins University

[10] Roubaud F. et Razafindrako M., 2021, “Bolsonaro et la covid-19 au Brésil : réflexions autour d’un double paradoxe” Revue La Regulation, n°29, https://journals.openedition.org/regulation/20124D

[11] O baixo seguro-desemprego, quando existe, acaba por empurrar os trabalhadores demitidos a buscarem empregos informais para sobreviver, sejam eles assalariados ou não. Esta tese foi desenvolvida pelo Banco Mundial e criticada por Lautier B. (2004) em L’économie informelle dans le Tiers monde, ed. La Découverte. De acordo com Lautier, não podemos falar do setor informal, mas de empregos informais muito diversos. Isso explica porque podemos observar combinações de empregos formais e informais para trabalhadores pobres e modestos.

[12] Mathias G. ,1987, “Etat et salarisation restreinte au Brésil“, Revue Tiers Monde, n° 110, https://www.persee.fr/doc/tiers_0040-7356_1987_num_28_110_4556.

[13] Ver Corseuil C.H., Franca M., Padilha G. Ramos L. e Russo F., 2020, Comportamento do mercado de trabalho brasileiro em duas recessões: análise do período 2015-2016 e da pandemia de Covid-19, Nota técnica n° 92, IPEA, https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=37491&Itemid=9

[14] Para evitar eventuais confusões, vale lembrar que esta não é a população economicamente ativa (PEA). A PEA é calculada somando-se à população ocupada com os desempregados que estão procurando emprego. A taxa de desemprego é calculada em relação à PEA. No gráfico, está representada a parcela dos desempregados em relação à população em idade ativa.

[15] Essa constatação não significa que os trabalhadores fazem um cálculo racional entre trabalhar e não trabalhar de acordo com o valor dos benefícios que receberiam em caso de desemprego, como a corrente liberal gosta de pensar. Isso porque as ofertas de emprego são tão baixas devido à crise que eles estão se retirando do mercado de trabalho. Na ausência de subsídio de desemprego, o auxílio apenas lhes permite esperar que as perspectivas melhorem.

[16] Todos esses dados estão no INEGI: https://www.inegi.org.mx/temas/empleo/

[17] O baixo número de empregos formais criados em julho de 2021 (20000) é parcialmente explicado pela queda dos empregos públicos.

[18] Nesse caso, trata-se da pobreza medida pela renda monetária necessária para comprar uma cesta básica de alimentos stricto census.

[19] As remesas, avaliadas em US$ 23,6 bilhões no primeiro semestre de 2021, foram 40% maiores do que as quantias enviadas no primeiro semestre de 2019, ou seja, antes da pandemia. No entanto, como La Jornada observa, em 29 de julho, os dois últimos decis (os mais ricos) se beneficiaram mais com o crescimento nas remesas do que os outros decis.

[20] Em 26 de agosto de 2021, 59,6% da população aprovava sua política, pelas reformas, mas também por suas declarações contra a corrupção, pela impressão de honestidade que passava, por uma melhoria no emprego e na renda, apesar da pandemia e de sua onda de mortes.

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