AUKUS, Joe Biden e China: uma nova sigla, um velho dilema, por André Moreira Cunha e Andrés Ferrari

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Com o AUKUS (Australia, United Kingdom e United States), Joe Biden mostra claramente que está seguindo, com o mesmo objetivo, a estratégia de contenção de Donald Trump contra a China, apesar de seu discurso liberal.

Joe Biden provou, mais uma vez, que os EUA estão convencidos de que devem conter a China, tanto regional quanto globalmente. Um passo decidido nessa direção foi o anúncio, em 15 de setembro, do acordo dos EUA com a Austrália e o Reino Unido para estreitar os laços em termos de “segurança, defesa e compartilhamento de informações e tecnologia”.

Para promover a segurança na região Indo-Pacífica, os Estados Unidos e o Reino Unido ajudarão a Austrália a construir uma frota de submarinos com propulsão nuclear, criando a associação que foi chamada, a partir de seus nomes em inglês, de AUKUS.

Na prática, esse acordo visa unir esforços para restringir o poder naval chinês e limitar o avanço das empresas do gigante asiático em áreas de fronteira tecnológica, especialmente em áreas de dupla utilização, ou seja, que atendem a interesses civis e militares.

Desse modo, esta união trilateral tem como objetivo desenvolver as áreas “… cibernética, de inteligência artificial, de tecnologias quânticas e de capacitação subaquáticas”.

AGENDA DE JOE BIDEN

Unir democracias para preservar ‘valores universais’ está no centro da agenda internacional de Biden.

Por isso, seu governo promoverá a “Cúpula pela Democracia”, em dezembro deste ano, com o objetivo de reunir governantes e lideranças da sociedade civil para discutir as ameaças à democracia e aos direitos humanos Ameaças decorrentes das novas tendências autoritárias.

Contudo, embora haja várias evidências desses ataques, inclusive nas próprias democracias ocidentais – e particularmente nos Estados Unidos, onde os republicanos estão promovendo uma legislação “antidemocrática” -; geopoliticamente trata-se de um movimento para isolar a China.

Em outras palavras, é nítido que construir uma aliança em defesa da “democracia” implica num impacto geopolítico.

Em seu discurso, na Conferência de Segurança de Munique, em fevereiro, ele afirmou que “… a democracia não acontece por acaso. Ela deve ser defendida, fortalecida e renovada.”

O acordo AUKUS deixa claro que os Estados Unidos não ficaram apenas na retórica: vão transferir tecnologia e recursos financeiros para o desenvolvimento de complexos militar-industriais dos Estados Unidos e do Reino Unido, que já estão celebrando os futuros contratos milionários.

SEM FRATERNITÉ COM A FRANÇA

Curiosamente, a contra-reação inicial mais intensa não veio dos chineses, mas da França – um importante aliado do eixo democrático-ocidental.

Ao saber dos termos específicos do AUKUS, o ministro das Relações Exteriores da França, Jean-Yves Le Drian, se disse “furioso” e, acrescentou, que o que os Estados Unidos fizerem “não se faz entre aliados”. Concluindo com raiva que: “É uma punhalada nas costas … essa decisão unilateral, brutal e imprevisível era o tipo de coisa que Donald Trump costumava fazer.”

Para não deixar dúvidas sobre a visão da França, foi emitida uma declaração conjunta do Ministério da Defesa e do Ministério das Relações Exteriores bastante severa: “A decisão americana de excluir um aliado e parceiro europeu de uma relação estruturante com a Austrália, no momento em que enfrentamos desafios sem precedentes na região do Indo-Pacífico, tanto em termos de nossos valores quanto em termos de respeito ao multilateralismo baseado no Estado de Direito, mostra uma falta de coerência que a França só pode olhar com pesar ”.

RAIVA DA FRANÇA EM AUKUS

A indignação francesa veio do fato dela ter perdido um contrato de US $65 bilhões porque, ao aderir ao AUKUS, a Austrália encerrou as negociações com a França para o fornecimento de doze submarinos nucleares.

Emmanuel Macron, o presidente francês, e o primeiro-ministro australiano Scott Morrison se encontraram em Paris três meses antes para celebrar tal contrato – que havia sido negociado desde 2016. Durante a visita de Morrison ao Palais de l’Elysée, Macron saudou a ligação entre os dois países, afirmando que seria um “pilar (da) parceria e relação de confiança entre (os) eles… , pois tal programa se baseia na transferência de conhecimento e tecnologia, o que nos unirá pelas próximas décadas”.

Depois de chamar o ato de Biden de “traição”, Macron chamou seus embaixadores da Austrália e dos Estados Unidos de volta, para darem explicações – em um claro sinal de aborrecimento.

É pertinente esclarecer que a União Europeia não foi consultada ou informada e o principal diplomata da entidade, Josep Borrell, só recebeu detalhes sobre o AUKUS após o seu anúncio público.

Tal como aconteceu com a retirada das tropas norte-americanas do Afeganistão, Biden agiu unilateralmente, sem dar explicações ou fazer pedidos prévios aos seus principais parceiros e aliados, pois acreditava estar agindo em defesa de seus interesses.

DÓLARES E ARMAS

A produção de armas e os gastos militares envolvem interesses geopolíticos, econômicos e tecnológicos.

As compras governamentais nesses segmentos não seguem parâmetros competitivos de mercado e, portanto, estão sujeitas a todas as formas de exceção em relação às regulamentações internacionais, principalmente no que diz respeito às regras da Organização Mundial do Comércio.

Nenhum estado nacional minimamente organizado brinca com questões de segurança nacional ou compra armas de última geração em “mercados livres”.

COMO O MERCADO GLOBAL DE DESPESAS MILITARES É DISTRIBUÍDO

Em 2020, o mercado global de gastos militares atingiu US $ 1,9 trilhão (2,1% do PIB mundial), segundo estimativas do SIPRI (Stockholm International Peace Research Institute).

Em primeiro lugar estão os Estados Unidos (40,3%), seguidos à distância pela China (13,1%), e que juntos representam mais da metade do total.

Em seguida, a uma certa distância e com pouca diferença entre si, estão: Índia (3,8%), Rússia (3,2%), Reino Unido (3,1%), Arábia Saudita (3,0%), Alemanha e França (2,7% cada), Japão (2,5%), Coréia do Sul (2,4%), Itália (1,5%) e Austrália (1,4%).

A importância do Acordo AUKUS, nesta perspetiva, é visível, pois, por si só, atinge uma quota relativa de 44,8% deste tipo de despesas, mais do que o triplo da capacidade da China ou da União Europeia.

DESPESAS MILITARES ESTRATÉGICAS

Entre os componentes dos gastos militares, aqueles associados às armas revelam-se particularmente estratégicos. Ao longo da história, as principais inovações tecnológicas sempre tiveram sua origem nos esforços para defender e promover guerras. As empresas fornecedoras de equipamentos militares se beneficiam desses gastos e conseguem obter mercados cativos, o que garante um horizonte estável de receita.

Dessa forma, elas são capazes de desenvolver avanços que podem ser usados ​​nas áreas civil e militar-espacial, ou seja, o chamado complexo militar-industrial está localizado no centro mais dinâmico das indústrias das principais economias avançadas e emergentes.

OS MAIORES FORNECEDORES DE ARMAMENTO

Em 2019, ano mais recente com dados disponíveis na base de dados do SIPRI, se verificou que os 25 maiores fornecedores de armas faturaram US $ 361 bilhões, montante que correspondeu a 41% do total das vendas (US $ 874 bilhões).

Nas economias ocidentais, principalmente nos Estados Unidos, é comum haver conglomerados privados que atendam às demandas governamentais e também produzam amplas e diversificadas linhas de produtos para o consumo de famílias e empresas.

É o caso dos grandes conglomerados americanos: Lockheed Martin Corp., Boeing, Northrop Grumman Corp., Raytheon, General Dynamics Corp., General Electric etc.; e europeus :BAE Systems, Rolls-Royce, Thales, Dassault Aviation Group, Leonardo e Airbus, etc..

Na Rússia e na Arábia Saudita, predominam empresas estatais que dependem, basicamente, da venda de armas e equipamentos militares para o governo ou para outros países por intermédio do poder estatal. Na China, as principais empresas fornecedoras de armas e equipamentos para as Forças Armadas são estatais, embora o peso das receitas com a comercialização desses produtos varie entre 15% e 30% do total das vendas.

IDEALÍSTICO, MAS REALÍSTICO

Biden justificou suas ações de política externa com base nos imperativos do interesse nacional, algo típico da teoria realista das relações internacionais, que privilegia questões de poder entre as nações em vez de princípios ideológicos, assim como a visão idealista.

Neste aspecto, ele está seguindo os passos de Trump, que sistemática e claramente adotou essa perspectiva sob seu slogan “América em primeiro lugar”.

Contudo, ao mesmo tempo, Biden se apresentava como aquele que está resgatando o posicionamento mundial tradicional americano, posicionamento esse que se define por seus valores e ideais. Ao reposicionar o país sob esse eixo, Biden argumenta que está resgatando o conteúdo moral que Trump descartou.

Mas, como presidente dos Estados Unidos, Trump já havia levantado a ideia de unificar “as democracias do mundo”, embora fosse explícito que o objetivo era enfrentar a China. Mais do que isso, Trump afirmou que desejava que esse agrupamento de democracias substituísse o G-7 que, segundo ele, “não existia mais” – fala que evidencia o seu desprezo pelos europeus. Essas semelhanças e continuidades deixam claro, para seus aliados e rivais, que os Estados Unidos não pretendem recuar na disputa contra a China e a Rússia.

AUKUS, O GARROTE[1] NO DIÁLOGO COM A CHINA

A China, principal objetivo da AUKUS, expressou claramente, através do porta-voz do Ministério das Relações Exteriores, Lijian Zhao; que para ela esta associação trilateral: “compromete seriamente a estabilidade regional e a paz, intensifica a corrida armamentista e enfraquece os esforços internacionais pela não proliferação (de armas nucleares)”.

Além disso, declarou que a decisão dos Estados Unidos é “altamente irresponsável e evidencia em discurso duplo, valendo-se da exportação de (tecnologia) nuclear para seus jogos geopolíticos”.

Biden se apresenta como alguém que preza o diálogo, mas também está disposto a mostrar suas armas, o que lembra a expressão de seu antecessor, o presidente Theodore Roosevelt Jr. (1887-1944) que explicou sua política externa sob a inspiração de um provérbio africano: “Fale em voz baixa e tenha um grande garrote à mão.”

Biden, após um longo diálogo cordial com Xi, mostrou o seu garrote, AUKUS, à região do Indo-Pacífico.

Foto: reprodução

André Moreira Cunha é Doutor em Economia pela Unicamp e Professor Associado do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS.

Andrés Ferrari Haines é professor Adjunto do Departamento de Economia e Relações Internacionais, Faculdade de Ciências Econômicas e do Programa de Pós-graduação em Estudos Estratégicos Internacionais (PPGEEI-UFRGS). Integrante do Núcleo de Estudos dos BRICS (NEBRICS-UFRGA) e Poder Global e Geopolítica do Capitalismo (aferrari@ufrgs.br).



[1] Instrumento de tortura (legal na Espanha até a abolição da pena de morte em 1978 e muito uilizado em países por ela colonizados) que consistia em um pedaço de pau ou em uma cadeira ao qual o condenado era amarrado e um anel de ferro com o qual seu pescoço era espremido contra uma ponteira de metal que o perfurava causando grande suplicio e levando a morte.

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