Argentina, a nova oportunidade da América Latina, por Maria Jose Haro Sly

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Com euforia, milhões receberam a nova fórmula presidencial no mais tradicional centro político “Praça de maio” em Buenos Aires. Alberto Fernandez, como novo presidente, expressou os pontos-chave de suas futuras políticas: a luta contra a pobreza (atualmente mais de 40% da população), promover o crescimento econômico e a inserção estratégica inteligente no mundo.

“Hoje, mais do que nunca, é preciso colocar a Argentina de pé como condição necessária para voltarmos a andar. Isso significa, antes de tudo, recuperar um conjunto de equilíbrios sociais, econômicos e produtivos que não temos hoje”, expressou o novo presidente Alberto Fernandez.

Uma em cada duas crianças está abaixo da linha de pobreza na Argentina. A luta contra a pobreza e a fome será o principal objetivo do governo. Fernandez mencionou que mais de 15 milhões de pessoas sofrem de insegurança alimentar em um país que é um dos maiores produtores de alimentos do mundo. “Sem comida, não há presente ou futuro. Sem comida, a vida só sofre. Sem comida, não há democracia ou liberdade.” Ele enfatizou que este é o resultado de políticas neoliberais que falharam mais uma vez na Argentina. Mas, para resolver esse problema estrutural, as forças produtivas precisam ser ampliadas e aprofundadas. Ele afirmou claramente que este é um modelo centrado na produção econômica, com vínculos com a economia real, incentivando a produção e não a pura especulação financeira.

Uma questão chave e definidora para o sucesso de Fernández será enfrentar o problema da dívida externa. Depois de Macri a dívida externa passou a representar 95% do PIB. Seu ministro, Martin Guzmán, um jovem economista (37), é um acadêmico que trabalha com Joseph Stiglitz na Universidade de Columbia. Guzmán afirmou que “existe apenas um plano na negociação com o FMI”, que consiste em adiar os pagamentos para 2022. Alberto Fernandez falou em seu discurso: “Não há pagamentos de dívida que possam ser sustentados se o país não crescer. Tão simples como isto: para poder pagar, você precisa crescer (…) O país tem vontade de pagar, mas não tem capacidade para fazê-lo (…) Os credores se arriscaram investindo em um modelo que falhou ao redor do mundo repetidamente. Queremos resolver o problema e para isso precisamos que todas as partes trabalhem com responsabilidade.”

O mais recente empréstimo argentino do FMI, o maior de toda a história da instituição, apenas ajudou a pagar uma campanha política cara e malsucedida, de modo que eles também compartilham parte da responsabilidade pelo fracasso deste plano. Fernandez disse à imprensa: “O FMI é culpado, financiou a campanha de reeleição mais cara da história”. Para a negociação, eles contam com dois pontos importantes: a responsabilidade do FMI no financiamento de um empréstimo impagável e o fato de que o mesmo é contrário ao “Artigo VI da Lei Constitutiva do FMI”, cujo primeiro parágrafo afirma que “nenhum membro pode usar os recursos gerais do FMI para atender a uma grande ou recorrente saída de capital.” Sim, durante a presidência de Macri, o aumento líquido da dívida pública em moeda estrangeira foi de 103.8 bilhões de dólares e a fuga de capitais foi de 93.6 bilhões de dólares, o que significa cerca de 90% da dívida foi direcionada para contas no exterior.

Os Estados Unidos contam com 16,5% dos votos do FMI e, junto com o Japão, China, Alemanha e França, os cinco principais países, concentram quase 40% dos votos. Uma negociação estratégica com esses países será um aspecto essencial da reestruturação do atual “default virtual”.

Para pagar a dívida, Fernández enfatizou que vai promover uma diplomacia comercial dinâmica. O Ministério das Relações Exteriores se concentrará em conquistar novos mercados, impulsionar as exportações, promover o país ativamente para o ingresso de investimentos diretos estrangeiros, que contribuam para modificar processos tecnológicos e gerar empregos. Uma estratégia importante para obter dólares do comércio internacional com o intuito de pagar a dívida e dinamizar a economia.

“A América Latina é o nosso ‘lar comum’”, afirmou Fernandez. Ele apontou o contexto regional em que os movimentos autoritários cresceram em vários países, houve golpes e, ao mesmo tempo, em vários países, há crescentes reivindicações dos cidadãos contra o neoliberalismo e a desigualdade social. Surpreendentemente, Hamilton Mourão, vice-presidente de Bolsonaro no Brasil, foi à Argentina para a celebração da assunção presidencial. Fernandez apontou que as duas potências sul-americanas precisam construir uma agenda ambiciosa, inovadora e criativa, na área tecnológica, produtiva e estratégica, apoiada pela irmandade histórica de nossos povos e que ultrapasse qualquer diferença pessoal daqueles que governam a conjuntura.

Fernandez visitou Lula no Brasil em junho passado e repetiu Lula Livre em inúmeros casos. Sua visita contribuiu para pressionar o Supremo Tribunal Federal no Brasil a libertar Lula da prisão, gerando desconforto a Bolsonaro e seus aliados. No discurso de Fernandez, outro ponto central foi a reforma da justiça. Segundo o novo mandatário nunca mais acontecerá operações políticas em nome da justiça.

Um dia após o discurso, Evo Morales foi para o exílio na Argentina depois de ficar no México. Desta forma Fernandez se posiciona fortemente num lado importante na denúncia do golpe de Estado na Bolívia, inclusive contra a OEA.

“Não há mais lugar para colonialismos no século XXI”, aludindo à interferência das potências mundiais nos países em desenvolvimento, foi outra declaração importante no discurso de Alberto Fernández. Ele reafirma que a Argentina trabalhará incansavelmente para fortalecer a reivindicação pacífica, embora legítima e imprescritível, de direitos de soberania sobre as Ilhas Malvinas – ocupadas pelo Reino Unido desde 1833 -, a plataforma continental, a Antártica Argentina e os recursos naturais que essas extensões possuem porque pertencem a todos os argentinos.

Além disso, Fernández apontou a necessidade de uma transição para um modelo de desenvolvimento sustentável, consumo responsável e valorização dos ativos naturais. Ele reconhece a Encíclica “Laudato Si” do Papa Francisco (o Papa argentino é o líder mais importante da Igreja Católica, o primeiro Papa não europeu desde a fundação da instituição), uma Magna Carta ética e ecológica em nível universal e decidiu classificar a área ambiental como Ministério.

Ministérios que haviam sido rebaixados ao status de secretarias (e perdido recursos orçamentários) caso do Ministérios da Saúde, do Ministério da Agricultura, do Ministério da Cultura e do Ministério da Ciência e Tecnologia voltaram ao seu anterior patamar hierárquico, em linha com a nova agenda de investimentos em capital humano e desenvolvimento produtivo. Ele também criou novos ministérios, como o Ministério da Mulher e Gênero e o Ministério do Desenvolvimento Territorial e Habitat.

Um aspecto interessante do gabinete é que três dos ministros são filhos de pessoas desaparecidas durante a última ditadura na Argentina, no final dos anos 70, o que é uma grande mudança depois do governo de Macri (que representava setores que apoiaram e foram beneficiados pela ditadura, como a própria família de Macri).

Este é um governo de coalizão – os ministérios são divididos pelas forças que levaram à vitória nas eleições. Alberto Fernández precisará orquestrar muito bem a arena internacional, a economia e as alianças domésticas para obter sucesso e combater a fome da qual padece o povo, de maneira sustentável. Há uma grande expectativa, mas em um contexto difícil. A Argentina é o único foro progressista na América do Sul.

Foto: Divulgação/ Frente Todos

Maria Jose Haro Sly é socióloga, nascida na Argentina. Mestre em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina e mestranda em Estudos Contemporâneos da China pela Escola da Rota da Seda, da Renmin University of China.

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