Para que serve um banco público? Por Liana Carleial

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A moeda específica do capitalismo é o crédito. Todas as demais que circulam a olho nu como unidade de conta, medida de valor ou até mesmo como reserva de valor são formas de gestar o crédito. É o crédito que faz as moedas mudarem de mão, o investidor encontrar o poupador, o imóvel, os automóveis, as ações e as obras de arte encontrarem seus compradores. Tal como não existe capitalismo sem Estado, não existe capitalismo sem crédito. Essa não é uma novidade, pois já foi assim entendida por Marx, quando tratou das funções do dinheiro e por Schumpeter, quando chamou de capitalista, o banqueiro, aquele que emprestava dinheiro ao empresário inovador para que esse promovesse uma ruptura no fluxo circular da renda, criando um novo produto, novas técnicas e/ou novos processos produtivos.  Por mais que os serviços bancários tenham se “modernizado” e que todas as Instituições bancárias tenham apps que só faltam falar, a intermediação entre – quem dispõe de dinheiro e quem precisa dele – é a tarefa precípua e, antiga, realizada pelos bancos. O crédito que se inicia com uma simples separação no tempo entre os atos de comprar e pagar torna-se mais complexo ao longo do desenvolvimento do capitalismo.

Como sabemos, o capitalismo, em seu desenvolvimento histórico, nas diferentes formações sociais, produz crises e instabilidades. A crise clássica, é a de realização, quando os produtores, ao terem vendido seus produtos não se sentem obrigados a comprar. A presença de bancos que fornecem créditos é um dos anteparos às crises capitalistas mas também podem provocar crises à medida em que normas bancárias são desrespeitadas bem como procedimentos prudenciais de operação, o que exige um papel efetivo dos Bancos Centrais. Todos nós lembramos da crise das hipotecas “subprime”, eclodida em 2008, nos EUA, cujos efeitos ainda sentimos até hoje.  Tal como o modo de produção, o sistema financeiro está sujeito a crises; igualmente, tende a produzir concentração e desigualdades entre países, regiões e pessoas. 

O sistema bancário realiza as funções básicas de efetivar pagamentos, cobranças e guardar  reservas. Todo recurso monetário disponível numa dada sociedade é dirigido aos bancos e transforma-se em capacidade de empréstimo. Todos os grupos sociais que compõem o sistema econômico: governo, firmas, famílias, trabalhadores, exportadores e importadores necessitam de crédito, mesmo que hajam diferenças significativas entre esses agentes. Os trabalhadores e famílias, em geral, vivem de seus salários e rendimentos, porém a compra de bens imóveis (casa,  apartamento), necessariamente, os coloca como dependentes da oferta de crédito de longo prazo. Os bancos também podem cumprir um papel anticíclico, na medida em que o Banco Central altere as regras monetárias de depósito compulsório ou do patamar da taxa de juros.

Para alguns autores, como, por exemplo, Minsky et alii(1996), o papel central do sistema financeiro ou da estrutura financeira é possibilitar que o movimento do capital se faça numa escala ampliada que leve `a acumulação, de tal sorte, que sejam ampliadas as capacidades produtivas e a geração de riquezas. Esse processo porém, também não é igual entre países e regiões.

Como a lógica do capital determina, a concentração e centralização de capitais são as regras básicas de seu funcionamento e tal lógica rege também o sistema bancário e /ou financeiro. É, exatamente, neste ponto que se institui uma possibilidade para a entrada de bancos públicos no sistema. Neste mercado, bancos privados e públicos concorrem, e dada a estrutura concentrada desse mercado, especialmente, em países subdesenvolvidos, são poucos os bancos que dominam, constituindo portanto uma estrutura oligopólica, podendo inclusive chegar à prática de cartel.  

Ao longo do desenvolvimento capitalista, a tendência de concentração de riqueza e poder foram compensadas/ponderadas pela ação dos Estados nacionais. O exemplo mais eloqüente é o período pós segunda guerra mundial quando o Estado do Bem Estar Social, definido como um amplo conjunto de ações para a proteção dos trabalhadores e dos cidadãos em geral, consegue se fortalecer e ocupar um espaço orçamentário importante no fundo público dos países desenvolvidos. E, permanece até hoje[1], mesmo diante das mudanças recentes no cenário mundial como a globalização, o consenso de Washington, a flexibilização produtiva e as políticas de austeridade.

A ação dos bancos públicos tem também essa natureza no sentido de que, por muitos caminhos, busca democratizar o acesso ao crédito. Na realidade, quando se tem uma estrutura bancária dominada por poucos bancos como é o caso brasileiro, é preciso garantir a disponibilidade de recursos de longo prazo e atender a setores produtivos ou regiões que nem sempre são atendidos pela rede de bancos privados. Nesse sentido quando os Estados nacionais sentem a restrição de créditos para o desenvolvimento de investimentos de interesse nacional, uma das estratégias é a criação de bancos públicos comerciais ou banco públicos múltiplos também voltados para a promoção do desenvolvimento. Além disso, os bancos públicos são um importante sustentáculo das políticas públicas de cada governo. Em primeiro lugar, grande parte dos salários pagos pelo Estado, em suas distintas esferas, são depositados nos bancos públicos; em segundo lugar, o financiamento de setores específicos tais como agricultura, construção civil e habitação popular, etc. Em terceiro lugar, os bancos públicos também são os pagadores de benefícios sociais e previdenciários do Estado. Quando se trata de países ainda subdesenvolvidos e, profundamente desiguais como é o caso brasileiro, a restrição de acesso ao crédito é significativa.

No cenário internacional, praticamente todos os países do mundo possuem bancos públicos tal a sua relevância e até mesmo, imprescindibilidade. Tais bancos possuem a função de reduzir a incerteza e instabilidade da economia e do acesso a créditos privados. Em geral, cumprem o papel de financiar estradas, saneamento básico, energia, transporte e, portanto, além de auxiliar empresas a gerar empregos formais, se ocupam da infraestrutura social e urbana. Países como a China, EUA, Coreia do Sul, Chile , Japão, Alemanha, possuem bancos públicos   Em geral, os recursos desses bancos, em todo o mundo, advém de fundos  gerados por poupança compulsória depositadas por firmas, trabalhadores e consumidores.

O Brasil possui importantes bancos públicos tais como o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal. Os dois primeiros, com mais de um século de existência, além dos bancos públicos de caráter mais regional, como são os casos do Banco do Nordeste do Brasil S/A e o Banco da Amazônia, todos eles instituídos a partir da metade do século XX, no âmbito do processo de integração territorial do país e do surgimento das políticas de desenvolvimento regional. Os bancos de desenvolvimento regional, por sua vez são também detentores de fundos específicos. Nesta mesma época, é criado no segundo Governo Vargas, em 1952, o BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, voltado exclusivamente para o desenvolvimento brasileiro.    

O Banco do Brasil S/A é uma sociedade anônima, logo, tem acionistas privados, sendo o maior deles, o Tesouro Nacional, e é uma instituição com atividades diversificadas. No entanto, constitui o maior banco agrícola do país. A Caixa Econômica Federal é estatal, não possui ainda ações negociadas no mercado. Tem atuação fortemente voltada para as áreas urbanas, especialmente financiamento habitacional e infraestrutura urbana. No seu site, está dito que os recursos que mobiliza são do FGTS, depósitos judiciais e de sua tradicional “caderneta de poupança”. É o maior agente do governo para os programas sociais, como o Programa Bolsa Família(PBF).

O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) é o principal banco de desenvolvimento público, com a missão de “promover o desenvolvimento sus­tentável e competitivo da economia brasileira, com geração de emprego e redução das desigualdades sociais e regionais” (BNDES, site). É, certamente, o principal provedor de financiamento dos investimentos de médio e longo prazo no país. Grimaldi e Madeira (2016) mostram que cerca de 90% do estoque de empréstimo de longo prazo está no ativo dos bancos públicos sendo que 53% no ativo do BNDES. Os recursos desse banco são supridos em grande parte pelo FAT- Fundo de Amparo ao Trabalhador, criado em 1988 e regulamentado em 1990. Assim, o FAT cumpre o papel de proteção social dos trabalhadores desempregados e de baixa renda, por um lado, e por outro fornece recursos para o desenvolvimento econômico brasileiro. Segundo Santos(2019), o FAT, nos anos iniciais, chegou a suprir 90% dos recursos para o BNDES  e mobiliza, anualmente, em torno de 1,2% do PIB brasileiro.

A importante presença de bancos públicos brasileiros, no mercado financeiro, enseja cobiça e disputa, por parte dos interesses privados, movidos pelo desejo de acessar esses fundos, bem como ao mercado que tais bancos atendem. Essa “onda” é mais forte em alguns momentos, como o atual, com a clara intenção de fortalecer a corrente fortemente privatista que domina o Ministério da Economia e os grupos hoje no poder.

Neste momento vivemos uma fase de aprofundamento das práticas liberalizantes, mas não é a primeira vez. Na década de 1990, no período dos governos Collor e FHC, esse receituário foi aplicado, centrado na abertura comercial, flexibilização do mercado financeiro e do trabalho, introdução de novas técnicas e tecnologias, bem ao gosto do Consenso de Washington e como não poderia deixar de ser, marcado pelas privatizações de empresas estatais, o que atingiu a Vale do Rio Doce, o sistema Telebrás e mais 64 empresas (Biondi, 1999). Naquela ocasião, os bancos públicos federais sofreram ameaças mas não foram privatizados, o que permitiu aos governos que se seguiram implementar políticas públicas consistentes, tanto de caráter cíclico como anticíclico, como por exemplo, após a crise das hipotecas “subprime” em 2008/2009. Os bancos públicos são, verdadeiramente, um instrumento indispensável para a sustentação das políticas públicas necessárias ao desenvolvimento do país.

É bom lembrar que o espaço dos bancos públicos entre nós já foi muito reduzido quando também, na década de 1990, houve liquidação ou privatização da grande maioria dos bancos estaduais, que eram comerciais mas também de desenvolvimento como, por exemplo, o Badepe, o Banespa, o BEC- Banco do estado do Ceará, entre outros, o que abriu o mercado para os bancos estrangeiros.

No caso do BNDES muitos estudos relatam a sua importância. Erhl e Monasterio(2019; 3) realizaram um estudo pioneiro aplicando modelos de análise de sobrevivência para verificar se emprésti­mos do BNDES e suas condições específicas –  juros, volume, prazo de amorti­zação e carência – afetariam a probabilidade de as firmas continuarem ativas no mercado. Uma primeira evidência mostrada pelos autores é de que as firmas beneficiadas por empréstimos do BNDES possuem mais funcionários e filiais, acumulam experiências e só essas características já são redutoras de risco de morte. Ao analisar o conjunto das firmas, registradas na RAIS/ME, que receberam pelo menos um financiamento, no período 2003-2014, excluindo aquelas que acessaram o cartão BNDES, há diferenças segundo os respectivos portes. Empresas que entraram antes de 2002 no sistema, que possuem filiais e pelo menos cinco funcionários, o recebimento de empréstimos a juros menores, diminui o risco de saída. Subjacente a esse movimento, está também o aumento da produtividade dessas empresas, fator absolutamente indispensável para o avanço tecnológico no país.

Ademais, a disputa pelos recursos do BNDES, nos últimos anos recaiu sobremaneira nos recursos financiados a empresas brasileiras que realizam obras no exterior, sob a alegação de que os brasileiros estariam financiando  supostas ditaduras, o que ensejou  a busca por uma “caixa preta” que guardaria esse segredo. De acordo com a reportagem do Jornal Gazeta do Povo, do dia 02.07.2019, que divulgou os financiamentos realizados pelo BNDES de 1998 a 2018, a evidência é a seguinte: “No total, entre serviços de engenharia e bens, o banco financiou US$ 38 bilhões a 40 diferentes países nessas duas décadas. Desse montante, US$ 17,7 bilhões – ou 44% – foram destinados aos Estados Unidos.”  Continuando: “Mas o financiamento à exportação de serviços de engenharia é apenas uma fração de pouco mais de 25% do total de aportes do BNDES no exterior. A maior parte desses empréstimos vai para a exportação de bens de alto valor agregado – como aeronaves, ônibus e caminhões – de empresas brasileiras de grande porte.” Como o BNDES só negocia em reais, as empresas ou governos que importam serviços ou produtos brasileiros são obrigados a efetuar a entrada de dólares e/ou euros no Brasil, considerado rentável para o Banco. Logo, a “caixa preta”  só existia na cabeça dos que não querem ver o Brasil superar o subdesenvolvimento estrutural e histórico que nos atravessa.

Mais uma vez à luz de Minsky et alii(1996) é possível afirmar que os bancos públicos podem ser vistos como os que conferem maior eficiência na atenção a determinados segmentos do mercado financeiro mas também como instituições que podem conferir maior estabilidade à economia como um todo, reforçando como dito anteriormente, o papel do Estado nas economias capitalistas.

Referências bibliográficas

Biondi, A. O Brasil privatizado, SP. Fundação Perseu Abramo, 1999.

BNDES ( https:// www. bndes.gov.br)

Ehrl, P; Monasterio, L. M. Os empréstimos do BNDES e a sobrevivência de empresas, Bsb, IPEA. Texto para Discussão no.2518, outubro, 2019.

Gazeta do Povo, Jornal. edição de 02.07. 2019.

Grimaldi, D.; Madeira, R. F. Financiamento de longo prazo e bancos públicos: uma análise dos repasses do BNDES Finame no período 2005-2015. Revista do BNDES, Rio de Janeiro, v. 46, p. 5-38, dez. 2016.

Minsky, H. et alii. “Community development banks” In: Papadimitriou, D. (Eds)Stability in the financial system. London: Macmillan press Ltd, 1996.

Silva, S. P. “Capacidades Estatais para o financiamento do investimento no Brasil: uma análise da relação institucional de complementaridade entre o FAT e  BNDES”, Bsb, IPEA, Texto para Discussão no.2525, novembro, 2019.

Foto: Arquivo/ Agência Brasil

Liana Carleial. Economista, professora titular em economia da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e pesquisadora do Núcleo de Direito Cooperativo e Cidadania (NDCC) da faculdade de Direito da mesma Universidade. liana.carleial@gmail.com


[1] Em 2018, 82% dos cidadãos franceses recebiam alguma ajuda do Estado francês.

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