A Unila dez anos depois: entre a utopia e a obsolescência, por Paulino Motter

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Qual o papel da comunidade da Unila e seus apoiadores na atual conjuntura adversa? Cerrar fileiras em defesa do projeto, da democracia, dos direitos humanos e da integração regional solidária. Em síntese, lutar pelos verdadeiros valores que motivaram a sua criação e continuam justificando a sua existência. A Unila encarna uma ideia e um ideal de América Latina pelos quais vale a pena seguir lutando, independentemente do governo de turno. Vida longa à Unila!

Algumas ideias se colocam à frente do seu tempo, semeando utopias, inspirando inovações e impulsionando mudanças. Outras, que brotam em maior quantidade, envelhecem sem gerar frutos, emasculadas pelas transformações sociais, políticas e econômicas que foram incapazes de antecipar. Por sorte, a obsolescência de ideias pode preparar o terreno para que floresçam novos paradigmas e teorias.

Evoco esta reflexão a propósito da Universidade da Integração Latino-Americana (Unila). Prestes a completar o seu primeiro decênio, no próximo janeiro, é legítimo interrogar-se se este projeto – implantado na margem brasileira da cidade fronteiriça de Foz do Iguaçu – tem vitalidade para sobreviver às vicissitudes atuais e consolidar-se nas próximas décadas.

O êxito do projeto da Unila, na sua singularidade, depende fundamentalmente de tornar efetiva a sua dimensão supranacional, sem o qual a sua proclamada vocação latino-americana soará como mero slogan. Um grande obstáculo reside no fato de ter como único mantenedor o Estado brasileiro, cujos interesses estratégicos e visão sobre a integração não convergem, necessariamente, com o que propugnam e postulam os demais países da região.

A lei que a criou define como sua missão precípua “formar recursos humanos aptos a contribuir com a integração latino-americana, com o desenvolvimento regional e com o intercâmbio cultural, científico e educacional da América Latina, especialmente no Mercado Comum do Sul – MERCOSUL”. Este enunciado é reminiscente da teoria do capital social, formulada em termos estritamente economicistas.

Mas o seu aspecto mais problemático é insinuar uma pretensa benevolência do Estado brasileiro em formar um perfil profissional específico, dotado de competências para ser agente da integração regional. Com que propósito e motivação, o Brasil estaria interessado em promover e financiar a formação de “recursos humanos aptos a contribuir com a integração latino-americana”? 

A desconfiança inicial suscitada pelo projeto da Unila não é de todo desprovida de fundamento. Sob a liderança ideológica do Governo Bolsonaro, o Brasil substituiu a visão benigna da integração regional que parecia animar o projeto original, formulado no Governo Lula (2003-2010), por uma concepção de política externa centrada na primazia dos seus interesses econômicos.

Congruente com esta agenda, o novo líder conservador brasileiro definiu como prioridade da sua atuação regional o desmantelamento de várias iniciativas multilaterais que o Brasil havia ajudado a impulsionar, como a Unasul. O futuro do Mercosul, por sua vez, parece atrelado ao resultado das eleições presidenciais argentinas, uma vez que Bolsonaro manifestou clara preferência por um dos candidatos à Casa Rosada.

Portanto, o ambiente político nacional e regional não poderia ter se tornado mais adverso ao projeto da Unila. Se não bastasse o cerco ideológico a que vem sendo submetida, a instituição sofre ainda os efeitos negativos do drástico corte orçamentário imposto às universidades federais.

Há que ressalvar, porém, que os entraves ao avanço e consolidação da Unila já existiam e muito provavelmente subsistirão a esta administração. O que se pode esperar, como já vem ocorrendo, é um recrudescimento das dificuldades impostas à sua atuação latino-americana, pois o Governo Bolsonaro parece encarnar a antítese de todos os valores que a inspiraram.

Se os problemas enfrentados na implementação do projeto da Unila já se acumulavam, é bem verdade que se agravaram em função do golpe mediático-parlamentar que resultou no impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, em 2016, e que se mostraria mais do que instrumental para pavimentar o caminho para o improvável ascenso de Bolsonaro ao poder.

Conforme já assinalado, a gênese do projeto da Unila, sob a tutela do Estado brasileiro, estabelece por si só uma contradição aparentemente insanável. Historicamente, o advento das universidades modernas está associado ao processo de construção do Estado-Nação e afirmação da identidade nacional. Na América Latina, este nexo é particularmente visível, como bem demonstra a presença de “nacional” na nomenclatura de universidades de diversos países da região, como Uruguai, Paraguai e México, para nomear alguns.

Neste sentido, a Unila poderia ser vista como uma ideia que se coloca à frente do seu tempo, pois, ao assumir uma dimensão supranacional, suplanta o modelo que vigorou sob a batuta do Estado-Nação. A sua missão institucional não se subordinaria aos interesses imanentes do Estado Nacional, a menos que tivesse sido concebida como ou venha a converter-se em instrumento de um projeto velado de hegemonia regional.

Porém, a Unila não é um cavalo de Tróia presenteado aos nossos vizinhos. Também não é uma iniciativa tão exótica quanto possa parecer à primeira vista, embora possa ser vista como uma avis rara no panorama regional de educação superior. Iniciativas assemelhadas têm sido engendradas em diferentes partes do globo, em geral lideradas por países emergentes, como a China. A Unila segue, portanto, uma tendência contemporânea.

Este novo fenômeno foi bem documentado pela pesquisadora Susan L. Robertson, da Universidade de Cambridge, e seus pares no seminal estudo “Global Regionalisms and Higher Education: Projects, Processes, Politics” (Edward Elgar Publishin, 2016), cujo ponto de referência é o projeto “Espaço Europeu de Educação Superior” (EHEA, na sigla em Inglês). Conhecido como Processo de Bologna, é impulsionado pela União Europeia (UE) desde 1999. A esta iniciativa veio somar-se, a partir de 2004, o programa Erasmus de mobilidade estudantil.

Desenvolvido dentro da rica tradição de estudos comparados em educação, este trabalho coletivo oferece um vívido painel de projetos e experiências em desenvolvimento nos cinco continentes que evidenciam os impactos na educação superior da emergência de novos atores supranacionais e, por outro lado, contextualizam o papel que vem sendo desempenhado pelas universidades nos processos de integração regional e inter-regional. A Unila figura como uma das principais inovações no emergente espaço latino-americano de educação superior.

Como publicação datada, esta obra não logrou captar a onda de populismo conservador que assolou as democracias ocidentais nos últimos anos, assumindo características de um verdadeiro tsunami em alguns países, como o Brasil. O discurso antiglobalista, associado a um nativismo retrógrado, é um dos seus traços comuns em diferentes contextos nacionais. A propensão ao retrocesso se acentua em sociedades com escassa tradição democrática, como é o caso notório da maioria dos países latino-americanos.

Conjunturalmente, concedo que a maior ameaça de estancamento e obsolescência do projeto da Unila é a sua dependência administrativa e financeira de um governo que – a pretexto de afirmar e defender a soberania nacional – adota uma retórica beligerante que empurra o Brasil para um crescente isolamento internacional, provocando, inclusive, contenciosos e crispações nas relações com os seus vizinhos.

Neste ambiente hostil, o já difícil e lento processo de internacionalização da Unila poderá sofrer novos revezes, provocando uma atrofia ainda mais acentuada e desabilitadora da sua autoproclamada vocação latino-americana, o que acabaria por matar o projeto na sua essência. O risco é tornar-se cada vez mais parecida com as demais, assumindo o perfil de uma universidade genérica e distanciando-se, assim, da ideia inovadora que justificou a sua criação e deu-lhe o impulso inicial.

O cerceamento da autonomia universitária pelo atual governo – que atinge indistintamente todas as universidades federais – é outro fator inibidor que desestimula uma estratégia mais ousada para encurtar a distância entre a proposta original e o grau alcançado de inserção na América Latina.     

A utopia que inspirou a Unila continua viva e atual. O que se fechou foi a janela de oportunidade que permitiu o seu lançamento. É de lamentar que os ventos favoráveis dos primeiros anos não foram bem aproveitados – conforme mostra a paralisação e o abandono da obra do campus universitário. As adversidades do presente testam a sua resiliência e capacidade de cumprir a sua promessa.

Qual o papel da comunidade da Unila e seus apoiadores na atual conjuntura adversa? Cerrar fileiras em defesa do projeto, da democracia, dos direitos humanos e da integração regional solidária. Em síntese, lutar pelos verdadeiros valores que motivaram a sua criação e continuam justificando a sua existência. A Unila encarna uma ideia e um ideal de América Latina pelos quais vale a pena seguir lutando, independentemente do governo de turno. Vida longa à Unila!

Foto: Divulgação

Paulino Motter é doutor em Educação pela Universidade de Wisconsin-Madison (EUA) e gestor público com passagens pelo INEP, MEC, Itaipu Binacional. Fez parte da Comissão de Implantação da Unila (2008-2009) e integrou a equipe responsável por colocar a instituição em funcionamento (2010-2012).

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