A política externa argentina: da ditadura ao governo Macri, por Wagner Sousa

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Assim como outros países latino-americanos, a Argentina, em sua história de país da periferia capitalista, viu o embate entre forças internas favoráveis a uma inserção baseada no livre comércio e nas vantagens comparativas (que no caso argentino se dá com produtos agrícolas), integrada política e economicamente à ordem mundial “ocidental” euro-americana e forças autonomistas que compreendem que o desenvolvimento deve se dar através de uma estratégia nacional, na qual a indústria cumpre um papel importante na economia e deve ser estimulada pelo Estado e que, nas últimas décadas, põem ênfase na integração sul-americana, no que ocupa lugar fundamental a aliança com o Brasil.

A ditadura militar argentina teve dois períodos, entre 1966-1973 e entre 1976-1983. Assim como no Brasil estiveram presentes questões de cunho ideológico, de contenção da “ameaça comunista”. Mas, após um primeiro momento, prevaleceu o pragmatismo nas relações externas e em relação à URSS e o bloco socialista. A Argentina manteve-se no grupo dos não-alinhados e, na maior parte do tempo, preferiu ter um maior raio de ação para as suas relações externas sem adesão automática aos EUA. No segundo período da ditadura militar argentina, no entanto, com o comando do General Videla, houve uma tentativa de aproximação com os Estados Unidos de Jimmy Carter, que não corresponderam à subserviência com benefícios ao país. Tradicionalmente um grande exportador de commodities agrícolas, tinha relação importante com a URSS nessa área, com quem possuía um expressivo superávit comercial. Não condenaram a invasão do Afeganistão, pelos soviéticos, em 1979.

A partir do governo de Ronald Reagan, em 1981, a política de viés realista centrada no interesse nacional (sem a ênfase do governo anterior em direitos humanos, que fizeram se estabelecer sanções contra a Argentina, como a suspensão da venda de armas) viria a suspender essas restrições, o que fez os argentinos novamente investirem na aproximação com os EUA. A Argentina colaborou ativamente com as políticas de sabotagem norte-americanas na América Central nos anos 1980, com agentes de seus serviços de inteligência a atuarem em El Salvador e contra o governo sandinista na Nicarágua.

No que se refere às relações com o Brasil, país com quem sempre competiu, foi a partir do governo Videla, em 1977, que se chegou a um acordo a respeito da construção da Usina de Itaipu (que sempre despertou desconfiança na Argentina pelo imenso volume de água estocado na represa, a maior do mundo por muitos anos até ser superada por Três Gargantas, na China, poder ser usado para, numa eventual guerra, inundar a região da capital Buenos Aires) e, em 1980, em outro acordo para utilização pacífica da energia nuclear.  Pode-se dizer que se tem, com estes gestos, embora não fosse a intenção nesse momento, o começo da cooperação política que redundaria no Mercosul, no início da década de 1990. Os regimes militares de Brasil e Argentina sempre desconfiaram que o vizinho pudesse desenvolver capacidades militares a partir de seu programa nuclear. Enfrentavam também os dois países pressões externas relativas aos seus programas nucleares. Segundo Dias Barbosa e Portilho: “A aliança do acordo sobre a questão da Bacia do Prata, iria refletir também em outro ponto sensível da relação bilateral que estava ligado com o desenvolvimento da pesquisa nuclear nos dois países. As negociações acerca dessa questão culminariam com a assinatura do acordo de cooperação e aplicação da energia nuclear para uso pacífico em 17 de maio de 1980. (…) os dois países concentraram esforços para buscar uma maior cooperação militar, inclusive na fabricação de aviões e mísseis. Além da cooperação no campo da pesquisa, o Brasil se comprometia a oferecer tório e demais combustíveis nucleares para o reator nuclear argentino ainda em construção. A cooperação nuclear com a Argentina foi (…) a melhor saída que a diplomacia e a cúpula militar brasileira encontrou para não abandonar seu programa de pesquisa na área, já que existia grande pressão externa para o que o país renunciasse e assinasse o Tratado de Não-Proliferação. Essa mesma situação era vivida pela Argentina no tocante ao seu programa nuclear (114).”

O modelo de substituição de importações vigente na América Latina dava sinais de esgotamento e as elites da região se inclinavam para reformas liberalizantes com o intuito de inserir seus países na globalização capitaneada pelos EUA. A década de 1980 foi também o período da crise da dívida dos países latino-americanos (que se iniciou com o drástico aumento da taxa de juros dos Estados Unidos em 1979, com o intuito de combater a inflação renitente no país e restaurar a hegemonia do dólar no sistema monetário-financeiro internacional, contestada na década de 1970), inflação alta e estagnação econômica. Diferentemente dos países do leste asiático, que empreenderam suas estratégias nacionais para se inserir na nova ordem liberal norte-americana, os latino-americanos preferiram seguir as receitas de abertura, desregulamentação e privatização emanadas dos Estados Unidos e instituições internacionais controlados pelos EUA como Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional. A Argentina, já no seu período de ditadura militar, experimenta a sua abertura econômica (o que o Brasil só faria a partir de 1990).

Para aplacar o descontentamento interno em relação aos problemas econômicos e sociais a Argentina resolve recuperar o território antes controlado pelos argentinos e ocupado pela Grã-Bretanha, as ilhas denominadas de Malvinas pelos argentinos e Falklands pelos britânicos. Esta guerra, na qual os argentinos são fragorosamente derrotados, desgastou ainda mais a ditadura argentina e foi determinante para o seu término.  

O governo pós-ditadura de Raúl Alfonsín usa essa difícil derrota para a sociedade argentina como argumento para consolidar a democracia no país.

Os fatores externos com que o governo de Raúl Alfonsín teve de lidar ao assumir: o último estágio de exacerbação do conflito leste-oeste, a crise da dívida latino-americana, a guerra na América Central e a existência de ditaduras militares em vários países vizinhos: Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai. Do ponto estritamente ideológico, seu governo coincide com dois momentos-chave do século XX. Por um lado, o início da abertura político-econômica na União Soviética desde 1985; por outro, com predominância de visão neoconservadora ou neoliberal em dois países-chave do Ocidente: os Estados Unidos de Reagan e o Reino Unido sob a liderança de Margaret Thatcher. Ambos os líderes profundamente anticomunistas. Esses países tiveram  influência sobre questões sensíveis ao governo, leia-se dívida externa e necessidade de financiamento externo. Estados Unidos, com sua influência chave no Fundo Monetário Internacional e no Banco Mundial e o Reino Unido com a sua influência na Europa, eram elos essenciais, especialmente no caso norte-americano, para encontrar canais em questões financeiras. Desequilíbrio fiscal estrutural, vulnerabilidade externa e existência de uma dívida impagável, juntamente com uma estrutura econômica em sérias dificuldades, condicionou o acesso ao crédito internacional e diminuiu a confiabilidade da política econômica argentina nos principais centros econômicos do mundo. No nível regional, as dificuldades foram especialmente a desconfiança em relação à existência de governos militares nos países vizinhos, percebidos como algo negativo para a nova democracia argentina, por um lado; por outro, na persistência de hipóteses de conflito com Chile, especialmente a partir da rejeição da sentença arbitral para a disputa do estreito de Beagle, no extremo sul dos dois países, em 1978. Isolamento internacional (guerra das Malvinas e visão internacional de país violador de Direitos Humanos), endividamento externo, mudança de regime internacional (transição para um mundo diferente do bipolar, ainda não muito claro em relação às suas características naqueles anos) e uma nova ideologia dominante no discurso e prática político-econômica internacional (neoliberalismo), será o escopo, não benevolente à propósito, onde a diplomacia do governo de Raúl Alfonsín terá que operar. (Jiménez, p. 110-111)

O mandatário argentino procurou apaziguar as relações com os vizinhos, especialmente o Chile e o Brasil. Em relação ao Brasil a aproximação com o presidente brasileiro (que também era o primeiro civil após período ditatorial) José Sarney aplacou desconfianças mútuas e gerou o ambiente propício para que a aproximação (que tinha dado alguns passos já no fim das ditaduras em ambos, como já citado neste texto) avançasse. Havia, como já destacado, na época, uma preocupação mútua em relação aos programas nucleares dos dois países e um histórico de reclamações oficiais da Argentina contra a construção da usina hidrelétrica de Itaipu, na fronteira entre Brasil e Paraguai. Estas preocupações, no entanto, terminaram durante os mandatos dos dois presidentes, após visitas aos projetos nucleares dos dois países e a visita de Alfonsín a Itaipu. (BBC, 2014)

Na década de 1990 a Argentina, com o presidente Carlos Menem, abraçou o neoliberalismo e a busca de uma aliança estreita com os EUA (que se traduziu em submissão por parte dos argentinos), Menem adotou um programa radical de privatizações, vinculou a moeda nacional, o peso, ao dólar norte-americano, com a currency board, e chegou até a mandar uma fragata para a Guerra do Iraque, em 1990. Menem seguia a tendência liberalizante que se espalhava pelo mundo, seguida também em toda América Latina. A política externa argentina da década de 1990 pode ser resumida na frase do Chanceler Guido di Tella sobre o estabelecimento de “relações carnais” com os Estados Unidos.

Miriam Saraiva e Laura Tedesco tratam desse tema: “Em relação à política nuclear, o governo considerava que mudando-a, também seriam beneficiadas as relações regionais. O presidente Menem deu continuidade ao processo de integração com o Brasil iniciado em 1985 e prestou especial interesse à política de cooperação em matéria nuclear. A partir dos anos 90 os dois países conjuntamente abriram mão de suas políticas nucleares autônomas. Depois de mais de duas décadas de resistência ao instrumento de não-proliferação nuclear; ambos ratificaram o Tratado de Tlatelolco e assinaram o Tratado de Não-Proliferação (TNP) de armas nucleares. Esta integração de suas políticas nucleares, coordenadas com uma aceitação das disposições internacionais dominantes sobre o tema, contribuiu para que os dois países aparecessem como parceiros mais confiáveis frente aos Estados Unidos e à União Européia. Estas mudanças foram possíveis, internamente, pela desmobilização política das Forças Armadas depois da queda da ditadura militar. Em princípio dos anos 90, os militares estavam sob controle civil, o que explica, em parte, o êxito do presidente Menem em modificar a política exterior e os temas estratégicos que, historicamente, haviam estado abaixo da esfera militar. Durante o período o feito mais controvertido foi, sem dúvida a participação argentina na Guerra do Golfo. O presidente Menem decidiu enviar os navios de guerra sem consultar previamente o Congresso e os países vizinhos. O Chanceler Cavallo argumentou que esta decisão ajudaria a integração da economia argentina no mundo, incrementaria os níveis de investimento estrangeiro e, portanto, significava uma continuidade das reformas econômicas domésticas (Clarín, 19/9/90:5). Neste caso, a política externa aparecia, novamente, atada à estratégia econômica.” (Saraiva, Tedesco, 132-133)

O Tratado de Assunção, em 1991, criou o Mercosul (Mercado Comum do Sul), que reuniu Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. O comércio entre Brasil e Argentina cresceu bastante na década de 1990 (passou de 3 bilhões de dólares em 1991 para 14,8 bilhões em 1998), embora tenha havido momentos de reivindicações protecionistas pela indústria argentina: “Esta foi uma política que teve consenso entre os partidos políticos, embora tenha tido que passar por períodos de pouca popularidade, especialmente em situações onde o déficit comercial com Brasil se fez sentir; por exemplo, em 1992. Neste período, argumentos protecionistas adquiriram força especialmente na União Industrial Argentina (UIA), assim como rumores, provindos de outros setores empresariais, que incentivavam a abandonar o Mercosul para integrar-se à Área de Livre Comércio da América do Norte (Nafta). Esta dicotomia Nafta/Mercosul esteve presente no discurso do governo durante os primeiros anos da década de noventa. Desde a imprensa argentina, se acusava o Brasil de manter uma atitude protecionista frente à liberalização da economia argentina. O Brasil era considerado o poder hegemônico cuja autonomia crescia graças ao Mercosul, enquanto a Argentina incrementava a sua dependência. Apesar dessas dúvidas acerca de suas limitações e possibilidades, o Mercosul significou uma das grandes transformações do período: o tradicional adversário convertia-se no maior sócio comercial colocando-se, de fato, como aliado no campo. Em um marco de negociações e de alternância entre momentos de avanço e momentos de estagnação, da assinatura do Tratado de Assunção até o final da década, o comércio entre ambos teve um crescimento significativo. Mas este crescimento não veio acompanhado de uma articulação no campo industrial e cambial, e a desvalorização do real em 1999, em contraste com a convertibilidade da moeda argentina, teve um impacto negativo sobre o comércio entre ambos. Este fortalecimento no campo comercial não significou, porém, uma aliança política no âmbito internacional. Nesta área, os Estados Unidos seguiram como referência principal.” (Saraiva, Tedesco, p. 134-135).

Perdeu importância, portanto, para a política externa argentina deste período, os aspectos estratégicos, de cunho militar, e redefiniu-se a ação do Estado tendo como pressuposto as questões econômicas, numa perspectiva liberal. Os resultados deste período foram muito ruins para a maior parte da população: “A Argentina tem, depois das reformas dos anos 90, uma pior distribuição de renda que em 1980. O incremento da desigualdade demonstra-se através da análise do coeficiente Gini que passou de 0.365 em 1980 a 0.412 em 1985; 0,443 em 1994; e 0,459 em 1997 (Tedesco, 2000). Enquanto o crescimento do PIB foi de 11.6% de 1993 a 1998; no mesmo período, 80% dos salários industriais diminuíram em 23.1% (Tedesco, 2000). Se os salários baixavam enquanto crescia a produtividade, a taxa de lucro absoluta também crescia, o que produz um forte impacto na distribuição de renda e ajuda a entender a evolução do coeficiente Gini.” (Saraiva, Tedesco, p. 130-131)

Fernando de la Rúa, do oposicionista Unión Cívica Radical vence as eleições em 1999, após dois mandatos de Carlos Menem, prometendo mudanças em relação ao governo do peronista Menem. Na política exterior, assim como na política econômica pouco se alterou, contudo. Na economia o peso continuava ancorado no dólar na paridade 1:1, o que o tornava tão forte como o dólar mas ao custo de minar a competitividade da economia do país. O presidente De la Rúa não alterou esta política (o que era tecnicamente difícil e muito custoso politicamente) e o país enfrentou grave crise no ano de 2001. Bernal-Meza trata da questão: ”(…) grandes mudanças na política externa não poderiam ser esperadas. As diferenças seriam mais nas atitudes e formas do que nos conteúdos (Bernal-Meza, 1999a). A Argentina não abandonaria sua aspiração de se tornar o principal interlocutor dos Estados Unidos na América do Sul, agora através de uma política de “baixo perfil”. Pequenas diferenças na política externa de Menem para De la Rua estão em um retorno de interesse na Europa, em particular Espanha  o principal investidor estrangeiro na Argentina e apelos pelo fortalecimento de consenso multilateral, aspirando a uma maior democratização das Nações Unidas. Em suma, além das diferenças de estilo, a política externa de De la Rúa não fez muito para se diferenciar da anterior. O fracasso de sucessivos modelos de desenvolvimento e integração internacional influenciou a política externa, marcando-a com uma linha de continuidades, mudanças e rupturas significativas, refletindo estágios de alinhamento com a Grã-Bretanha primeiro e de autonomia e novos alinhamentos (com os Estados Unidos , durante parte das décadas de 50, 60 e 70), para alcançar o período de novo alinhamento e inserção subalterna dos anos noventa. No entanto, sob estas “inconsistências de superfície”, houve uma coerência estrutural que permitiu explicar (Puig, 1984; 1988), em primeiro lugar, através da imagem do país percebido por sua elite, então as relações entre o modelo econômico e de inserção externa.” (Bernal-Meza)

Em dezembro de 2001 o país decretou moratória da dívida externa, então avaliada em 132 bilhões de dólares, 45% do PIB do país. Protestos nas ruas, restrições de retiradas de dinheiro (o corralito) nos bancos seguidas por saques de populares a lojas e supermercados. De la Rúa renunciou. O país teve cinco presidentes em dez dias. A maior crise da história da Argentina foi engendrada por uma década de neoliberalismo.

Após um período bastante instável e de troca de mandatários, na transição entre 2002 e 2003 a Argentina foi presidida por Eduardo Duhalde. O principal legado da gestão Duhalde na economia foi não aderir às propostas de dolarização total da economia e optar pela “pesificação” fazendo a moeda nacional voltar a ser a referência, em vez do dólar. Acompanhado por uma expressiva desvalorização, de mais de 200% (inicialmente se esperava algo em torno de 40%), a indústria ganhou impulso, houve substituição de importações com o ganho de competitividade e se iniciou uma recuperação, com queda do desemprego, embora tenha havido alta da inflação. A política externa de Duhalde esteve mais próxima à de Néstor Kirchnner do que a de Menem. Duhalde buscou se aproximar do Brasil, como Néstor, buscando contraponto aos Estados Unidos, bem diferente da política de “relações carnais” com os EUA executada pela diplomacia de Menem.

Contudo, a moratória e a herança dos anos 1990 ainda faziam com que as condições encontradas pelo presidente Néstor Kirchnner fossem especialmente difíceis e marcaram a sua política econômica e a sua ação externa. O país se encontrava em grave crise política, econômica e social, fruto da experiência neoliberal dos anos 1990, com o grave erro do estabelecimento do currency board para controle da inflação e da política de alinhamento com os Estados Unidos. Eleito com apenas 23% dos votos no segundo turno das eleições presidenciais Kirchnner precisava buscar a rápida recuperação econômica para, além de, evidentemente, tirar a economia da grave crise em que se encontrava buscar legitimidade na população. Na política externa buscou a integração na América Latina, especialmente na América do Sul em coordenação com o Brasil de Lula e a Venezuela de Chávez. A ação externa buscava o questionamento da ordem mundial liderada pelos EUA

Como salientado, não se pode deixar de levar em conta o impacto herdado da crise de 2001. Em situação de default da dívida pública, a inadimplência, o nível de desemprego, o aumento dos indicadores de pobreza, as dificuldades para garantir a governabilidade, a deterioração da figura presidencial e a descrença da sociedade. A política gerou um sentimento de anomia que ainda estava presente em maio de 2003, quando o presidente assumiu o cargo. Diante dessa situação, a sociedade manteve suas reivindicações perante a liderança para recompor os mecanismos de representação, melhorar as condições socioeconômicas do país e otimizar a execução de políticas públicas.

A opção de Néstor Kirchnner na ação externa buscava maior grau de autonomia para a Argentina ligada a uma modelo de desenvolvimento nacional de perfil industrialista e socialmente inclusivo. Consequentemente, a inserção internacional não foi abordada como um processo de acumulação de poder devido a vínculos e alinhamentos com atores poderosos, se buscou privilegiar a ideia de que um país se projeta de dentro para fora .Como salienta Aldo Ferrer no conceito de “densidade nacional” esta se baseia na coesão social, na qualidade da liderança, na estabilidade institucional e política, na existência de pensamento crítico e próprio sobre a interpretação da realidade, e, finalmente, de políticas propícias ao desenvolvimento econômico. Na referência histórica dos países que tiveram êxito em seus processos de desenvolvimento estes componentes de “densidade nacional” sempre estiveram presentes. A busca de coesão social se deu pela busca da redução da pobreza, aumento do nível de emprego e políticas de distribuição de renda. No plano externo questionou fortemente as políticas defendidas pelos países centrais, as pressões especulativas da finança internacional e as condicionantes dos organismos multilaterais de crédito (FMI, Banco Mundial) e reivindicou o multilateralismo e a importância do espaço regional. (BUSSO, p. 130)

Na campanha eleitoral que levou Cristina Kirchnner a suceder o marido Néstor na presidência mencionou-se que ela teria vocação mais internacionalista em comparação com o antecessor (aqui é importante salientar que “internacionalista” significa adepto de uma política externa liberal, no quadro das instituições internacionais lideradas pelos EUA). Esta característica gerou expectativas entre os atores políticos e econômicos que tinham sido beneficiados pela paulatina saída da crise, mas que não compartilhavam a visão sobre o modelo de desenvolvimento e preferiam retomar as práticas do período neoliberal. Pensava-se, ao fim de 2007, que o governo, com uma situação política e econômica interna mais tranquila, se poderia buscar uma alternativa de inserção internacional destinada a buscar reconhecimento político e econômico via uma reativação dos vínculos com os atores internacionais tradicionais – FMI, setor financeiro internacional, Estados Unidos, Europa, etc., deixando de lado a proposta de inserção baseada na noção de “densidade nacional”, que, a esta altura dos acontecimentos, implicava certas concessões de grandes atores econômicos para a execução das políticas públicas. Portanto, uma série de questões, dentre elas se destacam o conflito com os produtores agrícolas, a persistência das convicções ideológicas da presidenta para enfrentar os problemas da Argentina e, em 2010, o falecimento do ex-presidente Néstor Kirchnner, afetarão os vínculos entre governo e sociedade, gerando uma dinâmica pendular de resistência e apoio. (BUSSO, p. 133)

Pensando em termos sistêmicos, no caso tendo-se em conta o sistema internacional, e levando-se em consideração as questões estratégicas, econômicas e políticas, os governos de  Cristina, em relação ao do marido, enfrentaram uma situação bem mais desafiadora. No tocante à economia enquanto que no período de Néstor o mundo teve um período de crescimento econômico generalizado e relativa estabilidade, Cristina teve de administrar os efeitos da crise de 2008, a maior desde o crash de 1929 e que provocou retração em muitas economias (em especial dos países desenvolvidos) e baixa considerável do comércio internacional e, no segundo mandato, no valor da commodities (essencial, especialmente no caso da soja, para a economia argentina). As relações com os Estados Unidos viveram período que oscilava entre crise e intento de recomposição, até que a recusa do governo Obama em apoiar a Argentina na Suprema Corte norte-americana e buscar a reversão da decisão do juiz Griesa, que deu ganho de causa aos chamados “fundos abutres”, deteriorou a relação. Importante também destacar que a ascensão chinesa, o deslocamento de parte importante das relações econômicas globais para a Ásia e a formação do grupo dos BRICS (constituído por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), além da retomada da relação conflituosa de europeus e norte-americanos com a Rússia, que se acentua a partir da crise na Ucrânia, em 2014, configuram quadro novo deste século XXI e que gerou muitas preocupações no Ocidente. Um período mais conturbado na cena internacional e mais difícil de administrar. (Busso, p. 137)

O modelo de ação externa e desenvolvimento, portanto, foi ministrado da mesma maneira que Néstor Kirchnner. No entanto, o conflito com o campo abalou a relação positiva que existia entre governo e sociedade e havia acompanhado o ex-presidente. Isto dificultou a gestão de Cristina, que tinha como objetivo dar continuidade e aprofundar o modelo econômico e a busca de autonomia, para o que devia tomar decisões que afetavam os interesses de setores econômicos e midiáticos nacionais. Os vínculos com atores locais como as entidades agrícolas, a União Industrial Argentina, o grupo Clarin, a central sindical CGT e a oposição política foram mais confrontativos  e tensionaram de maneira permanente a cena política. Esta situação afetou eleitoralmente o governo em 2009 e 2013, mas não fez com que Cristina Kirchnner mudasse de rumo: modificou o sistema previdenciário, nacionalizou a companhia aérea Aerolíneas Argentinas e a petroleira YPF, enfrentou os fundos abutres, continuou os planos nuclear e aeroespacial, fomentou as políticas econômicas destinadas a manter o consumo e o nível de emprego e apresentou proposta à ONU para estabelecer regras para as negociações de dívida soberana. (Busso, p. 148) Nesse cenário o governo de Cristina buscou maior proximidade com China, Rússia e a América Latina, em detrimento das relações com os Estados Unidos. Estas pressões dividiram e polarizaram a sociedade argentina que, nas eleições presidenciais de novembro de 2015, por margem bastante estreita, elegeram o opositor de centro-direita Mauricio Macri.

A política externa de Mauricio Macri retomou a opção de década de 1990 de uma integração do país subordinada aos fluxos globais de capital, à especialização na produção agrícola e subordinação à ordem mundial capitaneada pelos EUA. Em campanha a coalizão “Cambiemos” (Mudemos), de Macri, defendia que a Argentina estava “fora do mundo” e em antagonismo com os Estados Unidos por se negar a negociar com os “holdouts” (os chamados “fundos abutres”), os dentetores de títulos da dívida pública argentina que não aceitaram a renegociação anterior, aceita por 93% dos credores, promovidas em 2005 e 2010.  Em 2016 Macri renegociou a dívida com estes fundos. O governo Cristina Kirchnner se negou a aceitar o determinado pela sentença do juiz Griesa, de Nova Iorque, de pagar a quem tinha se negado a entrar nas renegociações anteriores. Tal decisão, de um juiz singular federal do EUA, interferiu nas relações internacionais da Argentina. O governo Obama, ao não se manifestar perante a Justiça dos EUA, pleiteando inclusive uma discussão do caso na Suprema Corte, tomou partido desses investidores em detrimento da Argentina. Foi uma decisão política de não apoiar um governo com o qual não tinha boas relações e seguia políticas diferentes das preconizadas pelos EUA. Pesou também o fato de que o governo argentino buscava maior proximidade com os BRICS.

As relações exteriores claramente passam a ser pautadas por uma visão que privilegia o livre comércio em detrimento de outras questões, como segurança, por exemplo. O foco está mais voltado para o Mercosul do que instituições como Unasul e Celac. A Unasul (União das Nações Sul-Americanas) foi iniciativa capiteaneada pelo Brasil, com forte apoio da Argentina do casal Kirchnner, de criar uma institucionalidade que envolvesse todo o subcontinente. A Celac criada como uma alternativa à Organização dos Estados Americanos, fortemente influenciada pelos Estados Unidos. Na prática Unasul e Celac foram esvaziadas por vários governos da região inclusive Argentina e Brasil.  E, em última análise, o governo Macri não teve nem compromisso com o Mercosul propriamente pois defendeu, como alguns políticos de direita no Brasil (exemplo é o ex-Chanceler do governo Temer e Senador José Serra) que o bloco deixesse de ser uma união aduaneira (onde todos praticam as mesmas tarifas para importações de terceiros e praticam o livre comércio entre si, embora no Mercosul o comércio não seja livre para todos os produtos) e passe a ser uma zona de livre comércio. O que liberaria o país para acordos com os “majors” do comércio internacional, na concepção do governo: EUA, União Europeia, China, Japão e Rússia. 

O governo Macri defendeu uma “smart insertion strategy”, com mais acordos bilaterais. Nesta há uma “smart agenda” com foco em novos setores como internet das coisas, big data e inteligência artificial. Tendo em vista o baixo investimento do país em pesquisa científica (realidade que o governo Macri não logrou alterar) tal objetivo se mostra bastante longe da realidade. A Argentina buscou coordenação com o Brasil com o intuito de fechar um acordo de livre comércio com a União Europeia, negociação que remonta o ano de 1999. Em associação com o governo Bolsonaro conseguiu chegar a um acordo com os europeus, o que, contudo, encontra-se ainda ainda pendente de aprovação pelos parlamentos de todos os países das duas regiões.

Na política econômica Macri adotou uma linha neoliberal com liberação de preços públicos e fim dos subsídios concedidos nos governos Kirchnner (que significaram substancial aumento das tarifas e da inflação) e corte de gastos e benefícios. A pobreza aumentou significativamente em relação ao governo anterior. O país também se endividou substancialmente em dólares neste período (segundo o jornal El País a dívida em dólares aumentou 35%) e precisou assinar um acordo com o Fundo Monetário Internacional de 50 bilhões de dólares para “acalmar o mercado”, ou seja ter capacidade de enfrentar a especulação financeira. Para tanto, se comprometeu com mais ortodoxia e arrocho econômico. Em 2006, no governo Néstor Kirchnner a Argentina conseguiu quitar a dívida com o FMI, então em 9,8 bilhões de dólares.

De meados do século XIX até a década de 1930 a Argentina, com seu modelo agroexportador, se coloca entre os países mais ricos do mundo. A crise dos anos 1930 coloca esse modelo em questão, porém o país, nas décadas seguintes, não consegue fazer a transição para uma economia industrial moderna, embora tenha empreendido o seu esforço de industrialização. O período que abrange das ditaduras das décadas de 1970 e 1980 até o atual governo Macri vê em ação um “pêndulo” que hora se inclina mais para uma inserção subordinada à ordem global dominada pelos EUA e hora opta por uma posição mais autônoma, buscando a aproximação com o Brasil (já a partir do fim do período militar), com o restante da América Latina e mais recentemente, nos governos do casal Kirchnner, com atores como Rússia e China.

Foto: Arquivo/ Presidência da Argentina

Wagner Sousa é Doutor em Economia Política Internacional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Editor de América Latina

Referências

BARBOSA, Wilton Dias; PORTILHO, Isaque Elias. As políticas externas de Argentina e Brasil durante seus regimes militares: uma abordagem comparativa. Relações Internacionais, n. 51, p.107-123, 2016.

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BERNAL-MEZA,Raul.Política exterior argentina: de Meném a de la Rúa. São Paulo: São Paulo em Perspectiva, vol. 16, jan-mar. 2002

BUSSO, Anabella. Les ejes de la acción externa de Cristina Fernández: câmbios hacia un nuevo horizonte o cambios para consolidar el rumbo? La Plata, Província de Buenos Aires: Revista Relaciones Internacionales, 2016.

COMINI, Nicolás. The future of Mercosur: the argentinean perspective.  In: IV JORNADAS EUROPEIAS – Regionalism under stress: toward fragmentation and disintegration. FDUSP, 25 e 27, 2017, São Paulo, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=lZpxXDruqEQ> Acesso em: 9 jul. 2018.

JIMÉNEZ, Diego Miguel. La política exterior de Raúl Alfonsín (1983-1989): um balance aproximativo. Buenos Aires: Temas de Historia Argentina y Americana XVII, 2010.

PIMENTEL, Matheus. O que mudou na Argentina após 1 ano de Mauricio Macri. Nexo Jornal Ltda, 9 dez. 2016. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/ expresso/2016/12/09/O-que-mudou-na-Argentina-ap%C3%B3s-1-ano-de-Mauricio-Macri>. Acesso em: 9 jul. 2018.

SARAIVA, Miriam Gomes; TEDESCO, Laura. Argentina e Brasil: as políticas exteriores comparadas depois da Guerra Fria. Brasília: Revista Brasileira de Política Internacional, 2001.

SIMONOFF, Alejandro. Regularidades de la Política Exterior de Néstor Kirchnner. Monterrey, México: Confines de relaciones internacionales y ciencia politica, 2009

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