A diplomacia “lobo guerreiro” e o Brasil em meio a rivalidade China-EUA, por Matheus Bianco

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A falta de respostas adequadas para a administração da pandemia do novo coronavírus no Brasil impõe ao país elevados números de óbitos decorrentes do surto e aponta para uma recessão econômica sem precedentes. Neste cenário, o Brasil se vê ainda diante de outro desafio: se posicionar diante da elevação das tensões diplomáticas entre China e Estados Unidos, considerando que uma resposta mal calculada neste conflito pode gerar retaliações por parte de alguma superpotência, agravando a já delicada situação econômica brasileira.

É verdade que há sinais de que o governo federal e a atual diplomacia brasileira já escolheram um lado nesta disputa. Desde a subida ao cargo de Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo adotou um alinhamento diplomático com o governo estadunidense, replicando no Brasil a estratégia norte-americana baseada no repúdio ao multilateralismo global e à ascensão da influência chinesa no globo, consolidadas no América First de Donald Trump.

São diversas as iniciativas desta replicação diplomática anti-chinesa no Brasil.  Destacam-se as constantes acusações de membros do governo brasileiro à China como causadora proposital da pandemia do COVID-19[1] e manifestações favoráveis à independência de Taiwan[2] por parte de deputados próximos a Jair Bolsonaro. O Brasil ainda se mostra interessado em participar do Diálogo Quadrilátero de Segurança (QUAD), uma iniciativa composta por EUA, Índia, Japão e Austrália, reconhecida por seu caráter de contenção à influência chinesa na Ásia. Tais condutas são consoantes com os alinhamentos ideológicos de Ernesto Araújo, que em documento pessoal revelado pela Folha de São Paulo em 2018, propõe a “contestação ao eixo globalista China-Europa-esquerda americana” a partir de um “pacto com nações cristãs e nacionalistas”[3]. Este alinhamento ideológico e a adoção da retórica anti-chinesa na diplomacia brasileira, agravada pela atual pandemia, oferecem ganhos duvidosos, mas perdas inquestionáveis na atual ascensão de hostilidades entre Washington e Pequim.

Muito a Perder…

Vejamos como exemplo o recente caso da Austrália, país que em 2018 exportou para a China 35,5% do valor total de sua produção, rendendo à nação australiana aproximadamente 90 bilhões de dólares, mais do que a somatória dos próximos 3 maiores parceiros comerciais do país, segundo dados da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD). Até então, a despeito da Austrália tradicionalmente seguir um caminho internacional sob os auspícios norte-americanos, integrando organizações lideradas pelos EUA afim de conter a hegemonia chinesa na Ásia, como a Aliança Cinco Olhos e o já referido QUAD, pouco se viu uma retaliação comercial chinesa tão forte quanto a implementada no último mês de maio.

As reprimendas chinesas ocorreram após Scott Morrison, primeiro ministro australiano, pedir investigações internacionais sobre o surgimento do novo coronavírus na China. A resposta de Pequim veio sob forma de sanções comerciais, suspendendo a compra de carne australiana e elevando taxas de importações de cevada australiana em 80%. O Partido Comunista Chinês advertiu a possibilidade de restringir compras de vinho e leite de Camberra, incitando ainda mais de 200.000 estudantes universitários chineses a se retirarem da Austrália e irem estudar em outro país. Tais estudantes, somados com os turistas chineses, movimentaram mais de 18 bilhões de dólares em 2019 dentro do território australiano. Este conjunto de sinais indicam que a China, de agora em diante, passará a se utilizar seu peso econômico com mais assertividade para intimidar e barganhar contra países que adotem políticas externas contrárias aos interesses chineses.

Esta postura dura de Pequim se identifica com a nova diplomacia chinesa conhecida como “lobo guerreiro”, devendo seu nome a uma série de filmes nos quais combatentes chineses derrotam inimigos liderados pelo Ocidente.  Alguns analistas já reconheciam o desenvolvimento desta política externa com a ascensão do atual líder Xi Jinping em 2008, mas notou-se proeminente sobretudo após 2014, em que Xi concentrou mais poder interno. Atualmente, este conceito de diplomacia vem ganhando muito mais sentido já que a China começou a sentir uma estratégia de contenção mais forte impulsionada por Trump contra o país asiático. As intenções do presidente norte-americano não podiam ficar mais claras depois que este expressou a necessidade de ampliar o G7 com a incorporação da Austrália, Coreia do Sul, Índia e Rússia. No jornal Global Times, considerado um portal porta-voz de Pequim, esta iniciativa foi condenada como uma atualização da Aliança das Oito Nações, que no início do século passado dividiu a China.

Do mesmo modo, para Zhiqun Zhu, professor de ciência política e relações internacionais da Universidade de Bucknell, a China vêm rompendo com a tradição de conduta internacional adotada desde Deng Xiaoping, caracterizada por manter uma diplomacia de baixo nível de conflitualidade. O professor, em matéria ao South China Morning Post, diz que ao impor sanções econômicas sobre a Austrália, a China transmite o sinal de que os países terão que pagar o preço de suas respectivas políticas externas de alinhamento com os Estados Unidos, especialmente se tais políticas atingirem interesses chineses.

Pode-se dizer que a conduta australiana em relação ao pedido de investigação internacional contra a China foi o estopim para Pequim, que já se mostrava insatisfeita com a participação de Camberra em exercícios militares conjuntos com os EUA no Mar do Sul da China. Insatisfações chinesas em relação ao país da Oceania também eram acumuladas devido a proibição da empresa chinesa Huawei de explorar a estrutura 5G de seu território, bem como a aprovação australiana de uma declaração contra a proposta de Lei de Segurança Nacional da China sobre Hong Kong.

Esta maior assertividade da diplomacia chinesa insere-se na conjuntura da Guerra Comercial de Trump contra a China, em uma tentativa norte-americana de desvinculação de sua economia em relação à economia chinesa. Isto pois os EUA veem com preocupação a excessiva dependência nacional da importação de bens chineses, o que colocaria o país norte-americano em uma posição desvantajosa diante de um potencial adversário geopolítico. Analistas, no entanto, destacam a quase impossibilidade de Washington desvincular a economia estadunidense da economia chinesa sem causar para si mesmo um dano de consequências devastadoras. Desse modo, é provável que sanções e retaliações entre as duas grandes superpotências recaiam também sobre outros países, a partir de uma estratégia de enfraquecimento de vínculos e alianças que um rival tentará impor sob o outro. A Austrália, neste sentido, foi uma das primeiras vítimas desse conflito, e não é difícil imaginar a extensão desse imbróglio sobre o Brasil.

Cabe notar que uma eventual retaliação chinesa sobre o Brasil teria consequências catastróficas para a maior economia da América Latina. Desde 2009 a China é o maior destino de commodities brasileiras e segundo dados da UNCTAD, em 2018 Pequim recebeu 26,5% do valor total das exportações do país, o que corresponde a 64 bilhões de dólares. Neste mesmo ano a China, por sua vez, enviou ao Brasil apenas 1,30% do valor total de suas exportações. A participação de empresas chinesas no mercado brasileiro também vem crescendo exponencialmente, não apenas no setor primário, mas também nos setores industrial, financeiro, energético, de transporte e de telecomunicações. Em 2017, nove das dez maiores aquisições de empresas estrangeiras na América Latina foram no Brasil, e sete destas nove envolviam compradores chineses.

Estes dados demonstram que o Brasil depende enormemente da China para escoar a produção de suas mercadorias, enquanto a recíproca de forma alguma é verdadeira. Apenas nos 4 primeiros meses de 2020, já durante a pandemia, o agronegócio brasileiro exportou um total de 31 bilhões de dólares ao mundo em mercadorias, sendo que apenas a China foi responsável por receber mais de 73% de todos os grãos brasileiros exportados neste período e quase metade (49%) das exportações de carne bovina. [4]

Até o momento, comentários agressivos de membros do governo brasileiro contra a China, como os do ex-ministro da educação Abraham Weintraub[5] e do deputado federal Eduardo Bolsonaro, não se transformaram ainda em grandes retaliações do Partido Comunista Chinês. Mas, a exemplo da Austrália, tais narrativas podem se materializar e afetar as relações comerciais entre os países, e o Brasil já vêm recebendo sinais da nova assertividade da diplomacia chinesa.

Em resposta aos comentários agressivos do deputado federal Eduardo Bolsonaro contra Pequim, em abril deste ano, o cônsul geral da China Li Yang publicou uma carta aberta [6]ao filho do presidente, repugnando o preconceito do brasileiro, e ressaltando a importância das relações comerciais entre os países. Li Yang chega a indagar-se na carta se o deputado estaria sofrendo uma “lavagem cerebral” promovida pelos Estados Unidos, a despeito de sua suposta “ingenuidade e ignorância”. O cônsul chinês alertou ainda que, “se algum país insistir em ser inimigo da China, nós seremos o seu inimigo mais qualificado”. Outra questão que vem à tona no momento é se o governo de Jair Bolsonaro aceitará a participação da Huawei no processo de construção da tecnologia da rede 5G no país. Ao passo que os Estados Unidos pressionam o Brasil para excluir a empresa chinesa das licitações, a China já deixou claro que interpretará este eventual comportamento brasileiro como um ato hostil. O recado chinês está dado.

Pouco a Ganhar…

Partindo de uma percepção dos objetivos estadunidenses sobre as relações com o Brasil, destaca-se brevemente que o presidente Donald Trump buscava no governo de Jair Bolsonaro dois principais objetivos. O primeiro objetivo era utilizar as forças e a diplomacia brasileira para a derrubada do presidente venezuelano Nicolás Maduro. [7]Apesar de Ernesto Araújo ter cogitado uma participação brasileira em uma eventual intervenção na Venezuela, os próprios militares deixaram claro que esta não era uma opção.[8]Depois de uma tentativa frustrada de tomada do poder, o líder da oposição venezuelana Juan Guaidó segue em contínuo descrédito em relação à comunidade internacional, e Nicolás Maduro permanece na presidência.

O segundo objetivo norte-americano em relação ao Brasil era justamente limitar a influência chinesa na América Latina. Porém, como demonstrado anteriormente, dificilmente o Brasil pode ajudar a reduzir a influência da China no subcontinente, mesmo porque a nação é altamente dependente das importações da China. Portanto, o governo de Jair Bolsonaro não conseguiu atingir nenhum dos dois principais objetivos esperados pelo governo estadunidense.

Talvez por isso, nota-se progressivamente que Trump descarta Brasília como um verdadeiro aliado. Em episódio recente durante a pandemia do COVID-19, Trump proibiu por decreto a entrada de brasileiros em solo norte- americano. [9] Enquanto membros do governo relatam que tal decisão teria apenas caráter técnico, Oliver Stuenkel, professor de relações internacionais da FGV, ressalta que muitos especialistas no tema não consideravam esta ação necessária. Para o professor, o movimento foi uma jogada eleitoral de Donald Trump, demonstrando que o presidente está disposto a sacrificar suas relações com o Brasil se isso significar um aumento de sua popularidade doméstica.

Stuenkel relata ainda que o Brasil passa atualmente por uma crise profunda que afeta sua reputação no mundo, reputação esta que sofreu enormes abalos com as recentes más gestões do governo Bolsonaro em relação à crise ambiental e à crise pandêmica, bem como a escalada da retórica autoritária. O Brasil, assim, parece estar mais isolado que nunca. Caso Joe Biden ganhe as eleições dos Estados Unidos em novembro, esta situação tende a se agravar, já que há uma grande indisposição do Partido Democrata em relação ao governo Bolsonaro.

Justamente com a aproximação das eleições norte-americanas, a retórica de Donald Trump contra os chineses tende a se ampliar, como demonstra um memorando recentemente vazado do partido Republicano. O documento corrobora a versão de que a China será utilizada por Trump como estratégia de campanha presidencial e distração de possíveis erros do governo federal em relação ao gerenciamento da pandemia.[10]

Caso o Brasil continue seguindo com a atual diplomacia, o governo de Jair Bolsonaro pode se sentir tentado a também elevar a retórica anti-chinesa com Trump, eventualmente pedindo em conjunto reparações de Pequim em relação a crise pandêmica. Diplomacias ideológicas, no entanto, não podem mudar a realidade, que no momento, é categórica: o Brasil é extremamente dependente da China em questões econômicas. Pequim já deu sinais de que a partir de agora, está disposta a utilizar seu poderio econômico com maior assertividade para conquistar objetivos políticos, a exemplo do que fez com a Austrália.

Diante da já consolidada crise econômica, sanitária e política no Brasil, não parece ser positivo que o país acrescente em sua lista de preocupações a necessidade de lidar com a diplomacia “lobo guerreiro” chinesa.

Referências e Consultas:

[1] https://www.bbc.com/portuguese/brasil-51963251

[2]https://www.metropoles.com/brasil/politica-brasil/bolsonaristas-querem-que-brasil-reconheca-taiwan-como-povo-amigo-do-pais

[3]https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/12/futuro-chanceler-propos-a-bolsonaro-pacto-cristao-com-eua-e-russia.shtml

[4]https://en.mercopress.com/2020/05/19/brazilian-agribusiness-exports-to-china-booming

[5] https://exame.com/brasil/weintraub-ironiza-china-e-embaixada-diz-que-ministro-foi-racista/

[6] https://oglobo.globo.com/opiniao/artigo-valorizeas-relacoes-china-brasildeputado-eduardo-24350358

[7]https://brasil.elpais.com/internacional/2020-03-08/trump-troca-afagos-com-bolsonaro-e-reforca-imagem-de-alianca-entre-os-dois-paises.html

[8]https://valor.globo.com/politica/noticia/2019/04/30/brasil-descarta-intervencao-militar-na-venezuela-diz-mourao.ghtml

[9]https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/05/24/eua-anunciam-proibicao-de-entrada-de-viajantes-vindos-do-brasil-por-causa-de-coronavirus.ghtml

[10] https://www.dscc.org/news/leaked-memo-nrsc-told-republican-senators-dont-defend-trump-on-coronavirus/

https://www.politico.com/news/2020/04/24/gop-memo-anti-china-coronavirus-207244

https://unctad.org/en/Pages/Home.aspx

https://www.scmp.com/economy/china-economy/article/3088246/chinas-silent-treatment-australia-beef-barley-trade-row

Matheus Bianco é mestrando no Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais (PPGEEI-UFRGS). Pesquisa o impacto das sanções econômico-financeiras dos Estados Unidos sobre a Rússia e o aprofundamento das relações sino-russas no contexto pós sanções.

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