A integralidade no SUS: ameaças no ar, por Reinaldo Guimarães

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A Folha de São Paulo, na edição de 27/9, publicou texto intitulado “Reforçando o SUS”, de autoria de Armínio Fraga et al. Entre outros inúmeros aspectos, a matéria inclui uma proposta referente à política de incorporação de tecnologias do SUS, hoje responsável por uma parcela relevante de seu orçamento agregado. Não é simples medir o impacto das tecnologias no orçamento dos SUS. A face mais visível são os medicamentos, certamente o principal componente desses gastos e para os quais existe alguma bibliografia. Vieira mediu os gastos com medicamentos entre 2010 e 2016, chegando a um valor de R$ 18,6 bilhões em 2016 e crescimento de 30% no período estudado.

Atualmente, a incorporação de tecnologias é centrada na Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (CONITEC), constituída para servir ao SUS e que tem sido alvo de muitas pressões por parte dos que querem ampliar a cesta de seus produtos/serviços baseados em interesses comerciais, em particular a indústria farmacêutica multinacional.

Em 2019, primeiro ano da gestão Bolsonaro, na Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE), foi imaginada uma modificação do mecanismo de incorporação tecnológica no SUS, com a criação de um organismo externo ao Ministério da Saúde que absorveria as funções da CONITEC. Esse novo organismo examinaria as candidaturas de incorporação em decisões conjuntas para o SUS e para a saúde suplementar. Na esteira do novo debate para “Reforçar o SUS”, a proposta retorna à vida.

Na sua edição de 19/8, a Folha de São Paulo, em evento patrocinado pelo Instituto ONCOGUIA, abre espaço para Denizar Vianna (secretário da SCTIE em 2019) explicitar a sua proposta. “Uma agência única traria agilidade e eficiência ao processo e aumentaria o poder do Ministério para negociar preços, garantindo maior acesso à população”. Além disso, propõe que as avaliações com vistas à incorporação sejam realizadas a partir da entrada dos produtos no mercado e não a partir de prioridades estabelecidas pelo SUS. Em suas palavras, “Precisamos inverter essa lógica”. No novo ente, “…é possível criar um cronograma de incorporações… baseados nas necessidades e prioridades, negociados com as sociedades médicas e associações de pacientes”.

Do texto de Armínio et al. (FSP 27/9), retiro o seguinte trecho, que trata do tema da incorporação de tecnologias e que retoma a proposta de desmonte da CONITEC.

“Outro tema relevante é a crescente judicialização da saúde observada no Brasil… Cabe reconfigurar a Conitec, transformando essa comissão interministerial em uma agência independente —nos moldes do NICE no Reino Unido— que determine com clareza o rol de procedimentos cobertos pelo SUS, bem como a incorporação de novas tecnologias… Assim, litígios judiciais seriam reduzidos progressivamente, sobretudo os movidos por demandas nem sempre vinculadas a procedimentos efetivos e seguros para os pacientes.” A judicialização da saúde não depende da CONITEC nem foi criada por ela. É produto de uma insuficiência da Lei 8.080/90 (que criou o SUS) onde o conceito de integralidade não foi adequadamente regulamentado, praticamente repetindo o dispositivo constitucional. Para superar esse problema e para mitigar a epidemia de judicializações, disparada a partir de 2005, foi promulgada a Lei 12.401/2011 que, entre outros dispositivos, criou a CONITEC. No que respeita à incorporação de tecnologias no SUS, essa Lei não cumpriu totalmente seus objetivos e isso ocorreu pelas ambiguidades do STF ao examinar, em várias ocasiões, a epidemia da  judicialização, sempre ignorando a referida Lei e remetendo a questão ao preceito constitucional da saúde como direito fundamental e ao seu art. 196 (“saúde como direito de todos e dever do Estado…”).

Não me parece correto pensar que a regulação da incorporação de tecnologias no SUS melhorará com a criação de uma “agência independente, nos moldes da NICE no Reino Unido”. A judicialização epidêmica não é consequência de falhas no funcionamento da CONITEC, mas de interpretações ambíguas produzidas pelo sistema judicial brasileiro sobre a interpretação do preceito do direito à vida vis a vis a finitude dos recursos financeiros do SUS e à efetividade e custo-efetividade de novos produtos. Tanto é que no Reino Unido a judicialização tem sido controlada, não pela atuação da NICE, mas por uma postura mais firme do sistema judicial britânico em relação ao fenômeno (ver, Wang, DWL – Can Litigation Promote Fairness in Healthcare? The Judicial Review of Rationing Decisions in Brazil and England. A thesis submitted to the Department of Law of the London School of Economics for the degree of Doctor of Philosophy, London, August, 2013.). É a mudança dessa postura do nosso sistema judicial que poderá fazer com que a judicialização retorne a níveis adequados e não a criação de uma agência independente.

É verdade que a NICE tem autonomia em relação ao Ministério da Saúde britânico. Mas o que respalda essa autonomia é a imensa respeitabilidade pública conquistada pelo National Health Service. É o olhar da justiça britânica na direção do sistema público de saúde que garante que a autonomia não venha a operar contra ele. Situação inteiramente distinta da relação do aparelho judicial brasileiro com o SUS e mesmo da sociedade brasileira com este.

A CONITEC é composta por 13 membros. Sete pertencentes ao Ministério da Saúde, dois indicados por agências reguladoras (ANVISA e ANS), um do CONASS, um do CONASSEMS, um do Conselho Nacional de Saúde e um do Conselho Federal de Medicina. Resumindo, lá estão o governo em suas três esferas, os prestadores de serviços públicos de saúde, o controle social (usuários do SUS) e a representação corporativa dos prescritores. Entre 2012 e 2019, tomou pouco mais de 500 decisões, sendo cerca de 35% delas no sentido de excluir, não incorporar ou não ampliar o uso. As 65% restantes foram no sentido de incorporar, manter, atualizar protocolos/diretrizes e ampliar uso/indicação. A CONITEC funciona adequadamente, apesar de eventuais falhas. Os segmentos não representados na CONITEC são o complexo industrial e a saúde suplementar e, do ponto de vista do SUS, que é o que interessa, não haveria razão para lá estarem.

De resto, embora não apareça no documento de Armínio et al., na proposta de Denizar Vianna, há o que no jargão político atual é chamado de um “jabuti”. Essa nova agência, que incluiria a saúde suplementar, também incorporaria a Câmara de Regulação de Medicamentos (CMED), responsável pelo controle de preços de medicamentos no país, objeto de pressão permanente e intensa da indústria farmacêutica.

No meu ponto de vista, ambos deve continuar onde estão. No interesse da população, atender ao SUS. Nem aos interesses da saúde suplementar, nem aos da indústria.

Foto: Divulgação/ INCA

Reinaldo Guimarães é pesquisador do Núcleo de Bioética e Ética Aplicada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (NUBEA/UFRJ) e vice-presidente da Abrasco.

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