Os desafios da relação bilateral México-EUA, por Diego Angelino

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No último dia primeiro de setembro, Andrés Manuel Lopez Obrador (AMLO) apresentou seu segundo relatório de governo como presidente do México. Nesse relatório, se destacou a expansão dos programas sociais e a luta conta a corrupção.

Em matéria de política exterior, chama a atenção o fato de alguns temas parte da agenda global estarem ausentes ou serem tratados com como temas de menor importância no discurso do relatório de AMLO. A crise climática, a necessária transição energética e a assunção de governos autoritários são apenas alguns temas que entrariam nessa categoria.

No relatório, a política exterior se concentrou: 1) na assinatura do T-MEC, renovação do tratado de livre comércio da América do Norte, com os EUA e o Canadá; 2) na votação para que o México seja membro não permanente do conselho de segurança da ONU e 3) na gestão para assegurar que, no contexto da pandemia de COVID-19, seja aprovada uma resolução que reconheça a necessidade de que o tratamento, as vacinas e os profissionais de saúde para atender os doentes sejam de acesso global.

Historicamente, a política exterior mexicana se caracteriza pela defesa da liberdade de autodeterminação dos povos, mas também pela complicada relação bilateral com os EUA. Essa relação bilateral é, sem dúvida, um tema complexo, com uma história atormentada por conflitos e que tem implicações profundas e diretas na vida de milhões de pessoas.

Esse tema tem sido analisado a partir de perspectivas econômicas, políticas e sociológicas. O que reflete as múltiplas facetas de uma agenda que requer o máximo de cuidado.

No presente artigo, são examinados os desafios da presidência de AMLO em três grandes áreas da política bilateral: segurança, comércio e migração.

Segurança

O México ainda atravessa uma crise humanitária de proporções catastróficas. Cada ano se torna o mais violento da sua história e com um custo humanitário que inclui assassinatos, tráfico de pessoas e deslocamentos forçados. O governo de AMLO não pode conter os ciclos de violência no país e isso se deve, em grande medida, ao papel desempenhado pelos EUA.

Nesse sentido, o México tem um grande desafio: tornar os EUA corresponsáveis pela violência no país. Não se trata apenas do tráfico de armas, que entram de muitas formas legais e ilegais, mas também da política de segurança que envolva os grupos criminosos do seu vizinho do norte. Seria ilusório pensar que os narcóticos cruzam o amplo território dos EUA sem contar com redes de tráfico locais, que implicam altos níveis de corrupção, bem como as instituições políticas norte-americanas.

Existe, também, a necessidade de redesenhar grande parte dos acordos em matéria de segurança que, depois de seis anos, tiveram efeitos contrários aos que deveriam ter. Isso fica evidente em acordos como a iniciativa Mérida, que inclui o famoso programa “Velozes e Furiosos”, programa de treinamento em instituições militares dos EUA para integrantes do exército e da marinha, instituições conhecidas por sua tendência a violar os direitos humanos.

Durante o governo AMLO, a agenda de segurança se reduziu a três frases: “a paz é fruto da justiça”, “não se pode combater fogo com fogo” e “abraços não balaços”. Entretanto, o orçamento de segurança foi aumentado e atribuições civis foram dadas às forças armadas, tais como a construção de um aeroporto confiada ao exército e o controle de portos comerciais outorgado a marinha. O México permanece um dos países mais arriscados para se exercer o jornalismo e o tráfico de drogas se mantém alarmante.

Diante de Trump, em sua recente visita à Casa Branca (julho de 2020), AMLO praticamente não mencionou a questão do tráfico de armas. Algo que, provavelmente, está relacionado com a agenda belicista, bem como com a defesa da posse e do comércio de armas, feitas pelo presidente norte-americano.

Comércio

No contexto da pandemia de Covid-19, tem sido constantemente apontado o grande impacto que o alto consumo de açúcares, produtos industrializados e, de maneira geral, o modelo de consumo que transformou a dieta da população mexicana, tiveram no elevado número de mortes na pandemia. Isso está diretamente relacionado à assinatura do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta) em 1994, que representou uma transformação drástica nas estruturas de produção e de consumo no México.

Desde antes de sua assinatura, grupos de trabalhadores rurais e empresas nacionais haviam se mobilizado com o objetivo de conseguir condições mais justas para a produção nacional. Porém, assim que AMLO assumiu a presidência, ele comemorou, com um entusiasmo incomum, a assinatura da atualização desse acordo comercial, o T-MEC.

Isso representa uma grande contradição entre o discurso e a implementação da política comercial externa: se condena o neoliberalismo ao mesmo tempo que se comemora, como um triunfo, o aprofundamento de um tratado que foi pontado, desde o início, como o principal propagador do neoliberalismo no México.

“A melhor política externa é a interna”, repetia o candidato AMLO sempre que a questão era levantada nos debates presidenciais. No entanto, âmbito comercial, foram os interesses comerciais das multinacionais que ditaram o ritmo das negociações.

Imigração

Nos EUA há mais de 30 milhões de pessoas de origem mexicana. De acordo com o último censo desse país, 18,5% da população se identifica como “hispânica”, o que inclui não apenas pessoas de origem mexicana, mas de quase todos os países da América Latina e do Caribe (Caribe hispânico), bem como da Espanha. No entanto, a maioria dessa população é de origem mexicana.

Donald Trump transformou o fluxo de pessoas na fronteira sul numa das principais “ameaças” que o seu governo enfrentaria. Prometeu a construção de um muro inexpugnável nessa fronteira, custeado pelo próprio México, e, desde a sua chegada ao poder, tem restringido o acesso da população de origem “ilegal” à educação e outros serviços públicos.

Nesse ponto, a política externa de AMLO tem sido uma grande decepção, principalmente para os grupos que pensavam que o presidente assumiria uma posição firme e de defesa da população mexicana. Ao contrário, AMLO ao visitar a Casa Branca (07/08/2020), sem se encontrar com os grupos de imigrantes, declarou ao mundo o “grande respeito que Trump tem demonstrado pelo México e pelos seus habitantes”, pior ainda, ele de fato construiu um “muro” policial na fronteira, reduzindo notavelmente o fluxo de pessoas dos países da América Central para os EUA.

O desafio de AMLO é construir uma política externa que evite o confronto direto com o governo dos EUA, mas que, ao mesmo tempo, represente os ideais humanitários que seu governo supostamente defende.

Conclusão

AMLO chegou à presidência com o maior número de votos já registrado em uma eleição presidencial. Este fenômeno não se deve simplesmente a preferência por ele, mas também a décadas de corrupção e de má gestão que, nos últimos seis anos (Felipe Calderón e Enrique Peña Nieto), levaram o México a uma crise humanitária.

Um dos grandes escândalos que afetou a última eleição foi o convite de Enrique Peña para que o então candidato Trump – que representava uma plataforma racista e, em certo sentido, anti-mexicana – visitasse o México. Hoje, Trump tem a chance de ser reeleito e não mudou seu discurso, ao contrário, deu poder a grupos abertamente racistas que antes estavam nas sombras da política norte-americana.

Mesmo assim, a única viagem internacional que AMLO fez em dois anos de presidência foi aos Estados Unidos, impulsionando a campanha à reeleição de Trump. Muita gente vai dizer que a posição da AMLO é pragmática, que “não há outra”, que o México é dependente da economia do vizinho ao norte.

No entanto, pragmático mesmo seria reconhecer os grandes desafios dessa relação e ser coerente com a plataforma popular que o levou ao mais alto cargo desse país. Se “a melhor política externa é a interna”, onde está o amplo consenso nas negociações comerciais com as forças produtivas locais, e não apenas com as grandes empresas e as multinacionais? Onde está a discussão aberta com os grupos de vítimas e com os afetados pela política de segurança e pelo enorme fluxo de armas? Onde está o diálogo com as organizações de imigrantes, com as cidades-santuário e outros atores que enfrentam os ataques da política de Trump? Onde está a visão geopolítica que sabe se valer do papel da população mexicana nas poderosas economias da Califórnia e do Texas?

Faltam 4 anos para terminar o mandato de AMLO, os quais podem corresponder a um segundo mandato de Trump. Nesta situação, a falta de apoio às forças e aos movimentos sociais do México, o “pragmatismo” e a política de “dar a outra face” serão somente se expor a mais chantagens de Trump e colocar em uma posição ainda mais frágil os setores político e econômico do México.

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Tradução: Bruno Roberto Dammski

Foto: Shealah Craighead/ Casa Branca

Diego Angelino é Mestre em Cooperação para o Desenvolvimento Internacional pelo Instituto Mora do México. Ele tem especialização em Governança Global pelo Instituto Alemão de Desenvolvimento e participou do programa de treinamento International Futures para jovens diplomatas no Ministério de Relações Exteriores da Alemanha. Tem sido colaborador de instituições de cooperação internacional e também membro de grupos de trabalho e pesquisa em vários centros de estudos em economias emergentes. Atualmente é consultor independente em questões de sustentabilidade.

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