O Brexit ainda está no forno, enquanto a Grã-Bretanha se afunda na vala, por Andrés Ferrari Haines

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No dia 5 de Setembro de 2019 Boris Johnson disse à BBC que ele preferia “estar morto em uma vala do que atrasar o Brexit.” Embora um mês depois pedisse à União Europeia (EU) o adiamento da retirada do Reino Unido (RU), ele imediatamente assegurou que tinha um acordo do Brexit pronto ‘no forno’. A única coisa que o acordo precisava era dos votos que Johnson pedia para as próximas eleições gerais, e que ele obteve no final do mesmo ano. O primeiro-ministro estava com pressa para se livrar da UE para que o Reino Unido pudesse “encontrar seu destino “ por meio do seu projeto Global Britain.

Na página do projeto do governo, o chanceler Dominic Raab anunciou, em março, que com o Global Britain o país iria cumprir a “sua missão de ser uma força do bem no mundo” porque é o que “uma nação líder” deve fazer:

“porque se estas ilhas, se este arquipélago chuvoso ao largo da costa europeia, tem um destino particular, certamente será para servir de farol de esperança dentro e fora de casa, para lutar pela paz e prosperidade, para derrotar os inimigos da humanidade e agir como uma força para o bem. Essa é a nossa missão. Essa é a nossa promessa”.

O primeiro ato da Global Britain foi enviar um porta-aviões para patrulhar o Indo-Pacífico, uma área onde o poder está sendo disputada entre as duas potências principais do mundo: os Estados Unidos e a China. Assim, o projeto Global Britain é apresentado como a estratégia para que o Reino Unido volte a ser mais uma vez uma grande potência mundial, desta vez por aclamação. No prefácio do documento que apresenta o Global Britain Johnson anuncia que “2021 será um ano de liderança britânica.”

Sonhos dourados

Boris Johnson fez campanha para o Brexit alegando que seria o renascimento do país e o início de “uma nova era dourada”. O jornalista irlandês Fintan O’Toole afirma que “o Brexit é alimentado pelas fantasias do ‘Império 2.0’, que tem como seu ponto de partida “o Brexit do ano 1534.” Por isso Bilal Hafeez afirma que para Boris Johnson as roupas que “melhor lhe cabem seriam as do Henrique VIII”, o monarca da dinastia Tudor daquele ano. De fato, a jornalista Charlotte Higgins destaca no The Guardian que o Brexit desatou uma verdadeira Tudormania no país, concluindo que “os Tudors têm vindo a representar certa forma de excepcionalidade inglesa: uma ideia de uma Inglaterra que se destaca das outras nações e acima deles.”

A referência dessa época foi o longo reinado da Elizabeth I (1558-1603), filha de Henrique VIII. Por isso, Lord Price, ministro do Comércio da Grã-Bretanha, afirmou em 2016 que o Brexit poderia anunciar uma “segunda Idade de Ouro Elisabetana”, porque oferece uma “oportunidade única” para moldar um futuro brilhante para o Reino Unido como nação comercial mundial, emulando os exploradores do século 16 e prevendo um ‘novo começo’ para as empresas britânicas. Assim, “liberados de Bruxelas”, o Reino Unido continuará comerciando com a Europa e melhorará seu comércio com Oriente e o Ocidente. Assim, com o Brexit, afirma Price, o Reino Unido terá “a oportunidade de ser um super-conectado hub.” Por estas palavras, John Longworth, o ex-chefe das Câmaras de Comércio Britânicas, afirmou que “Lord Price deve ser aplaudido por abraçar o novo e ver as enormes oportunidades disponíveis para nós.”

Boris Johnson assumiu a liderança do Brexit assegurando que o Reino Unido iria a “ficar com o bolo e comê-lo também”, uma expressão inglesa que mostra uma impossibilidade porque ou se mantém o bolo ou se come: ambas as opções não são possíveis. Com a frase, Johnson argumentou que o Reino Unido iria se retirar da União Europeia sem ser prejudicado e que passaria a estar livre para negociar seus próprios acordos comerciais com quem e como quisesse. À BBC em 2016 ele declarou que “todo mundo sabe que este país recebe cerca de um quinto da produção industrial total de carros da Alemanha. Você propõe seriamente que eles vão ser suficientemente loucos para permitir que tarifas sejam impostas?” Na mesma linha, Sir James Dyson e Lorde Bamford, empresários importantes britânicos “disseram que os membros da UE vão estar desesperados para continuar a negociação como Reino Unido, que é um mercado importante para os automóveis alemães, os vinhos franceses e para o azeite de oliva italiano.”

Estas declarações apontavam que não haveria um “Brexit duro” com uma fronteira firme distinguindo o mercado europeu e o britânico…

O Brexit fica duro de todas as formas

Os primeiros meses pós-Brexit não têm sido bons para a economia britânica. A indústria de laticínios tem sido um dos maiores perdedores iniciais do Brexit, com as suas exportações para a EU de leite e derivados caindo abruptamente. Quedas semelhantes foram observadas em frango e carnes. Empresários de outros setores reclamam que consumidores da UE cancelam seus pedidos ao se recusar em pagar taxas e impostos adicionais. Por essa razão, algumas empresas avaliam se transferir para Europa continental. Instituições financeiras estão considerando abandonar Londres como centro financeiro e se instalar em cidades como Amsterdã, Frankfurt, Paris e Dublin, acreditando que elas irão crescer em importância para o setor.

Estes eventos assombraram os britânicos já que o argumento dos brexistas era de que o efeito imediato do Brexit seria o oposto: que as empresas iriam para ir para o Reino Unido atraídas pela redução do imposto sobre as sociedades para 15%, conforme prometido pelo chanceler George Osborne. Mas nem isso impediu que a pessoa mais rica do Reino Unido, Sir Jim Ratcliffe, com uma fortuna estimada em 17, 5 bilhões de libras, transferisse seu endereço fiscal para Mônaco em setembro de 2020 — embora seja um entusiasta do Brexit e tenha sido pouco antes nomeado cavalheiro pela rainha Elizabeth II pelos seus “serviços de negócios e investimentos”. Outros grandes contribuintes, ricos e brexistas britânicos também se que mudam para Mônaco a fim de evitar o pagamento de impostos.

Fervoroso brexista, Ratcliffe disse que o Reino Unido iria prosperar sem a burocracia de Bruxelas e deveria ser duro nas suas negociações com a UE porque ela precisava do acesso a o mercado do Reino Unido tanto quanto a Grã-Bretanha precisava de acesso ao mercado da UE. Mas a evolução do Brexit continuou sendo ruim para o Reino Unido. O setor agrícola começou a alertar que a produção britânica não conseguia cobrir pouco mais de 60% toda a demanda dos seus produtos, mas em alguns casos menos de 50%— e em relação às frutas, só 15%. Ao impacto pela ausência dessas importações, logo em seguido surgiram alertas de que na produção e distribuição de grande parte da produção doméstica, alimentos em particular, a contribuição dos trabalhadores que vinham do continente europeu era essencial.

Sem que o governo Johnson resolvesse esses problemas, finalmente, a situação degringolou, e a imagem de prateleiras quase vazias em supermercados e comércios passou a ser normal. Pela contínua falta de funcionários do continente europeu, os produtores ficaram sem condições de poder coletar a produção de muitos produtos primários, que ficaram estragados e as safras perdidas. Adicionalmente, outra parte sofreu o mesmo fim, mas por conta da falta de caminhoneiros qualificados para transportá-la até os pontos de venda. Diante das perdas de milhões de dólares, o governo está sendo questionado do porque, após anos de promoção do Brexit, não houve preparação de substitutos britânicos. A economia caiu 2,1% sem perspectivas de melhora. Para completar, o Reino Unido estaria deixando de ser uns dos dez mais importantes parceiros comerciais da Alemanha.

 “As desilusões da Global Britain”

Esse é o título do artigo de Jeremy Shapiro e Nick Witney em Foreign Affairs, no qual consideram que “o Reino Unido faria melhor ao se aproximar de seu próximo capítulo com um pouco mais de humildade. O país ainda pode desempenhar um papel central na política internacional ao “aceitar um papel de potência média”, e evitar “se entregar a fantasias”.

Da mesma forma o analista Peter Kellner em Carnegie Europe argumenta que “as ambições da Grã-Bretanha após a Brexit serão modestas, não globais” e que “todos os acordos comerciais concluídos até agora são essencialmente acordos de renovação que continuamos acordos que a Grã-Bretanha tinha como um membro da UE: “(…) o Reino Unido é menos ‘global’ do que era, porque se tornou mais difícil para o Reino Unido comerciar com a UE.” Adicionalmente, Kellner constata ainda que a agenda britânica de desenvolvimento internacional “não é mais um exemplo brilhante para o resto do mundo”, porque o país deixou de ser “um dos poucos países que cumpria a meta da ONU de gastar 0, 7 por cento de sua economia em ajuda”. Para Keller, “com o Brexit a Grã-Bretanha está descobrindo que ele tem pouca influência e menos poder para resolver os grandes problemas do mundo”.

Na mesma linha, Richard Haass e Charles Kupchan escreveram em março deste ano na Foreign Affairs que “o sistema internacional está em um ponto de viragem histórico”, porque depois de dois séculos, desde a dominação ocidental do mundo, “o ocidente está perdendo não o seu domínio material, mas também o seu domínio ideológico”. Para evitar que como no passado momentos de conflito como o atual acabassem em grandes guerras, eles propõem realizar “um concerto mundial das grandes potências”, independentemente do seu tipo de regime político, representando cerca de “70% do PIB mundial e dos gastos militares globais”. Estas seriam os EUA, a China, a União Europeia, a Rússia, o Japão e a Índia, acompanhados por quatro organizações regionais (a União Africana, a Liga Árabe, a Associação das Nações do Sudeste Asiático e a Organização dos Estados Americanos). Para eles, o Reino Unido pós- Brexit ficaria com “a adesão à UE.”

Nem Global nem Britain?

Em seu primeiro discurso como primeiro-ministro em 24 de julho de 2019, Boris Johnson afirmou que era à hora de liberar o poder produtivo “de todos os cantos da Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte. O quarteto impressionante que está incorporado em aquela bandeira vermelha, branca e azul.” Mas a Escócia está perto devotar pela independência do acordo firmado pelo Reino Unido em 1707, e a Irlanda do Norte tende a se unir com a República da Irlanda, para irritação dos irlandeses unionistas.

Para viabilizar o Brexit, Johnson concordou como Protocolo da Irlanda do Norte que estabelece a fronteira aduaneira da UE com o Reino Unido no Mar da Irlanda. Isso foi estipulado de forma a não afetar a fronteira das duas Irlandas. Mas, ao fazer isso, Johnson acendeu a ira dos irlandeses que se sentem parte do Reino Unido, levando a novos episódios de violência que tinham parado após a assinatura em 1998 do Acordo da Sexta-Feira Santa. Foi precisamente o fato de todos fazerem parte da UE que tornou possível este entendimento, pondo fim a décadas de confrontos sangrentos entre os grupos católicos e protestantes. Agora, os unionistas denunciam, até com episódios violentos, que o Brexit mina a unida Grã-Bretanha ao deixar a Irlanda do Norte com status legal separado.

O protocolo da Irlanda do Norte estipulou que a fiscalização e as proibições aduaneiras e sanitárias teriam um período de carência para permitir a adaptação. A data de conclusão acordada neste momento é outubro, mas o ministro britânico do Brexit, David Frost, acaba de afirmar que essa carência será prorrogada sem data definida para conclusão. Mais enfaticamente, Boris Johnson pede à UE uma “renegociação total do protocolo.”

Evidentemente, ao final, o Brexit não saiu do forno.

Foto: Quadro “Uma Alegoria da Sucessão Tudor – A Família de Henrique VIII”, de Lucas de Heere. Crédito: Wikimedia Commons

Andrés Ferrari Haines é professor Adjunto do Departamento de Economia e Relações Internacionais, Faculdade de Ciências Econômicas e do Programa de Pós-graduação em Estudos Estratégicos Internacionais (PPGEEI-UFRGS). Integrante do Núcleo de Estudos dos BRICS (NEBRICS-UFRGA) e Poder Global e Geopolítica do Capitalismo (aferrari@ufrgs.br).

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