Neutralidade do carbono com características chinesas, por Nancy Qian

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EVANSTON – O compromisso da China em alcançar a neutralidade de carbono até 2060, agora consagrado em seu 14º Plano Quinquenal (5YP), foi recebido com entusiasmo internacional. Se a China tiver sucesso, poderá sozinha reduzir  as temperaturas globais em 0,25 ° Celsius, em relação ao aumento esperado. Mas seu plano é realista?

Chegar à neutralidade de carbono é um desafio extraordinário para qualquer país, especialmente aquele com uma economia grande e em desenvolvimento. O problema apresenta duas dimensões: reduzir as atividades econômicas que produzem emissões de gases de efeito estufa (GEE) e produzir menos emissões, seja por meio de compensações, como reflorestamento, seja pela substituição de combustíveis fósseis por fontes renováveis ​​de energia.

No caso da China, é improvável que as atividades econômicas emissoras de GEE diminuam. A China é um país de renda média com 1.4 bilhão de pessoas, cerca da metade das quais vive com uma renda igual ou inferior à da África Subsaariana. Mesmo se a China puder desenvolver seus setores de alta tecnologia (como o novo 5YP pretende fazer), ainda haverá centenas de milhões de pessoas que precisarão de empregos em setores intensivos em energia, como a fabricação.

Além disso, embora o crescimento econômico da China seja mais lento do que no início dos anos 2000, o consumo doméstico de energia continuará a aumentar, devido à crescente demanda por carros e outros eletrodomésticos típicos para pessoas de renda média. Em 2020, havia 281 milhões de carros (204 por 1.000 pessoas) na China, em comparação com 279 milhões (816 por 1.000 pessoas) nos Estados Unidos e 78.9 milhões (649 por 1.000 pessoas) no Japão. Se a taxa de propriedade de automóveis na China atingir o mesmo nível que a dos EUA ou do Japão, o seu número de carros triplicará.

Por certo, a população da China deverá diminuir para menos de 1.2 bilhão em 2065. No entanto, seu consumo total de energia permanecerá alto. Para efeito de comparação, em 2019, os americanos consumiram 26.291 terawatts-hora (TWh) por ano com uma população de 328.2 milhões, enquanto os japoneses consumiram um total de 5.187 TWh por ano com uma população de 126.3 milhões. Se os 1.2 bilhão de chineses de 2065 se envolvessem nas mesmas atividades que suas atuais contrapartes mais ricas, eles consumiriam de 48.050 TWh (se comportando como os japoneses) a 93.725 TWh (como os americanos) por ano.

A capacidade da China de incorporar fontes de energia renováveis ​​é mais promissora. O país já fez enormes investimentos na construção de um sistema de transporte público que não dependa de combustíveis fósseis e está avançando rapidamente no crescente campo dos veículos elétricos. A grande incógnita é se a China será capaz de gerar energia suficiente para todas as suas necessidades domésticas e industriais sem combustíveis fósseis.

Há sinais positivos de que sim. O novo 5YP visa aumentar a contribuição da energia eólica, hidrelétrica e solar para 25% do mix de eletricidade até 2030, ante 15% no 5YP anterior. Embora seja uma meta ambiciosa, os recentes avanços tecnológicos tornaram-na eminentemente alcançável.

Por exemplo, como os recursos solares, eólicos e hidrelétricos da China estão concentrados nas províncias do oeste, enquanto a maior parte do uso de eletricidade está concentrada nas áreas costeiras do leste, a transmissão de eletricidade de longa distância altamente ineficiente anteriormente limitava o potencial de energias renováveis. Mas depois de investir pesadamente para resolver esse problema, a China dominou a transmissão de eletricidade em ultra alta tensão, que permite que a eletricidade circule pelo país a um custo baixo. Essa tecnologia avançada agora é fundamental para o novo plano de infraestrutura do governo, que visa transformar a estrutura do setor energético da China nos próximos cinco anos.

Outra fonte de energia renovável é a energia nuclear. A China possui atualmente 50 reatores operáveis que respondem por 4% de sua geração total de eletricidade. Outros 18 estão em construção, prometendo aumentar a participação para cerca de 6%. Desde 2016, as autoridades chinesas têm aprovado de 6 a 8 novos reatores por ano, uma taxa que elevaria o total para cerca de 350 até 2060.

Para que apenas a energia nuclear substitua o carvão, que responde por 66% da matriz elétrica, a China precisará construir mais de 500 reatores até 2060. E se sua energia precisar dobrar, precisará de cerca de 1.000 reatores a mais, dando-lhe a proporção de um reator/população semelhante à da França, onde 56 usinas produzem 70% da energia usada por seus 67 milhões de habitantes.

Construir mais 1.000 reatores nos próximos 40 anos pareceria financeira e logisticamente impossível. Mas provavelmente não para a China, que já transformou outras formas de infraestrutura em um período semelhante. Por exemplo, entre 1988 e 2019, estendeu seu sistema rodoviário nacional de cerca de 35.000 quilômetros (22.000 milhas) para 161.000 quilômetros, ultrapassando os EUA.

A China também está menos limitada pelo principal desafio que a maioria dos outros países enfrenta quando se trata de construir reatores nucleares: o medo público. Após o desastre de Fukushima no Japão em 2011, a Alemanha decidiu abandonar a energia nuclear, embora respondesse por 29% de sua matriz energética (em 2014). Da mesma forma, após o colapso parcial em Three Mile Island em 1979, a construção de novas usinas nucleares nos Estados Unidos quase parou. A energia nuclear agora responde por 20% do mix de eletricidade dos Estados Unidos e continua a enfrentar forte resistência de uma incomum aliança de interesses de combustíveis fósseis e organizações ambientais.

Não obstante, há um consenso na comunidade científica de que a energia nuclear é tanto econômica como ecologicamente correta. Os novos reatores de terceira geração são muito mais seguros e eficientes do que os reatores de primeira geração que vieram a ser associados a incidentes como o de Chernobyl. Agora, as consequências de um acidente ou ataque terrorista seriam comparáveis ​​às de muitos outros riscos comuns que simplesmente entendemos como garantidos. Ao perseguir suas metas de descarbonização, a China pode acompanhar os dados, ao invés de interesses específicos.

Sim, a política interna da China ainda pode criar alguns obstáculos, especialmente se a instabilidade em suas regiões ocidentais frustrar o crescimento da energia eólica, hidrelétrica e solar. Mas o governo chinês tem mais margem de manobra política do que outros quando se trata de impor suas preferências.

Se a China conseguir construir de 350 a 1.000 reatores nucleares com segurança, terá estabelecido uma cadeia de suprimentos de produção em massa capaz de fornecer a outros países – especialmente economias de renda média como Índia, Indonésia e México – as mesmas tecnologias a um custo mais baixo.

Ao todo, os fatos favorecem a ambiciosa meta da China de alcançar a neutralidade de carbono até 2060. O mundo inteiro se beneficiará com seu sucesso.

Tradução de Anna Maria Dalle Luche, Brazil

Foto: Panda Green Energy Group

Nancy Qian, professora de economia gerencial e ciências da decisão na Kellogg School of Management da Northwestern University, é Diretora Fundadora do China Econ Lab e do Northwestern’s China Lab.

Direitos Autorais: Project Syndicate, 2021.
www.project-syndicate.org

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