Deveriam os bancos centrais ter um mandato verde? Por Robert Skidelsky

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ATENAS – Em seu orçamento de março, o chanceler do Tesouro do Reino Unido, Rishi Sunak, ampliou o mandato do Banco da Inglaterra para incluir o apoio à meta do governo de atingir emissões líquidas de gases de efeito estufa até 2050. Mas em uma carta de 8 de junho ao Financial Times, Mervyn King, ex-governador do Banco da Inglaterra, criticou duramente a medida. King alertou que “uma expansão dos mandatos do banco central em  áreas políticas como as mudanças climáticas […] ameaça enfraquecer de fato a independência do banco central, levando a uma resposta lenta aos sinais de inflação mais alta.” Então, o que está acontecendo?

Um pouco de história pode ajudar. Na década de 1980, surgiu um consenso entre os formuladores de políticas de que o principal problema macroeconômico era a inflação. Os esforços “keynesianos” dos governos para empurrar o desemprego para baixo de sua “taxa natural” tornavam-nos guardiões não confiáveis ​​do valor do dinheiro.

Os governos, portanto, terceirizaram o controle da inflação para banqueiros centrais “apolíticos”. Em 1997, o novo governo trabalhista do Reino Unido, perfeitamente ciente da reputação do partido em gastos exagerados, deu ao BOE um mandato para cumprir uma meta de inflação de 2,5% (posteriormente reduzida para 2%). O poder de fixar a taxa de juros oficial (Taxa Bancária) foi transferido do Tesouro para o Comitê de Política Monetária do BOE.

A expectativa era de que o BOE, recém-autorizado aumentaria sua taxa de juros quando a inflação estivesse acima de 2% e a diminuiria quando a inflação (ou o nível de preços) caísse. Além disso, a natureza de médio prazo da meta de inflação deu ao BOE alguma margem de manobra para ajustar a política de taxas de juros para refletir a atividade econômica. Esse regime monetário, adotado pela maioria dos bancos centrais dos países ricos, teve o crédito de manter a estabilidade de preços durante a chamada “Grande Moderação” que durou até 2008. Mas os preços baixos das commodities, política fiscal conservadora e integração da China na economia global foram quase certamente fatores mais importantes do que as calibragens tecnocráticas dos banqueiros centrais independentes.

Na crise financeira global de 2008, no entanto, os bancos centrais foram além de seu papel tradicional como credores de último recurso e socorreram bancos comerciais falidos considerados “grandes demais para falir”. À medida que a crise bancária se transformava em uma desaceleração econômica severa e as taxas de juros oficiais caíam para quase zero, pensava-se que cumprir o mandato inflacionário exigiria ferramentas adicionais de política monetária. Aí entra a flexibilização quantitativa (QE), ou “política monetária não convencional”, que significava inundar a economia com dinheiro para compensar os efeitos da contração nos negócios.

Os bancos centrais encarregados de controlar a inflação estavam, portanto, usando a política monetária para evitar o colapso econômico – algo para o qual não tinham mandato. Em meio à confusão que se seguiu sobre a natureza de seu papel, os formuladores de política monetária afirmaram que suas maciças compras de dívida do governo – no valor de centenas de bilhões de dólares, euros e libras entre 2009 e 2016 –  tinham como objetivo “manter a taxa de inflação na meta”. Mas todos sabiam que a inflação era a última coisa que tinham em mente quando suas economias despencaram.

Se os bancos centrais tivessem anunciado abertamente o papel de salvadores de último recurso, a maioria das pessoas teria dito que isso seria responsabilidade do governo, e com razão. Como John Maynard Keynes apontou 80 anos antes, é o gasto, não a impressão, do dinheiro do banco central que é crucial para a atividade econômica.

Os bancos centrais nunca responderam de forma satisfatória à questão de como suas enormes injeções monetárias deveriam aumentar a real atividade econômica ou elevar os preços nesse sentido. À medida que as economias continuavam estagnadas, o melhor que podiam fazer era argumentar que as coisas teriam sido piores sem a flexibilização quantitativa.

Então, com a recuperação do choque financeiro de 2008-09 longe de estar finalizada, surgiu a pandemia do COVID-19. Desta vez, foram os governos que (com razão) começaram a gastar em grande escala para sustentar o poder de compra das sociedades em face dos lockdowns generalizados. Os bancos centrais, ainda ostensivamente perseguindo suas metas de inflação, agora financiavam qualquer escala de gastos públicos que os governos escolhessem, sem que ninguém se importasse em mudar seu mandato. Alguns intrépidos espíritos perguntaram como o financiamento de um déficit governamental sempre crescente poderia ser consistente com o alcance de uma meta de inflação de 2%. Mas essa pergunta foi considerada como uma forma ruim, uma vez que “minou a credibilidade” do mandato anti-inflacionário do banco central.

O novo mandato de Sunak para as mudanças climáticas, que pelo menos tem a virtude de ser transparente, chega em um momento em que as águas da política monetária já estão turvas e o significado da independência do banco central igualmente turvo. Estabelecer maior clareza sobre essas questões foi um dos principais objetivos do recente inquérito da Comissão de Assuntos Econômicos da Câmara dos Lordes do Reino Unido sobre política monetária.

O relatório do comitê, Quantitative Easing: A Dangerous Addiction? (Flexibilização Quantitativa: Uma Perigosa Dependência?) traça meticulosamente a deterioração progressiva da coerência do mandato do BOE. Ele reconhece que a prevenção de catastróficas mudanças climáticas deveria ser uma preocupação central das políticas públicas. A questão é simplesmente até que ponto o banco central poderia ser atraído para questões políticas sem minar a credibilidade conferida por sua independência da política. O relatório do comitê conclui cautelosamente que, devido à ampliação do mandato do BOE pelo chanceler, “o Banco corre o risco de ser forçado a entrar na arena política”.

Mas a questão importante não é até que ponto o mandato ampliado do BOE mina suas credenciais anti-inflacionárias, mas sim até que ponto ele distorce as responsabilidades do governo e do banco central pela condução da política econômica. O regime atual pressupõe que os banqueiros centrais deveriam controlar a quantidade de dinheiro, enquanto a alocação de dinheiro (ou capital) por meio do orçamento permaneceria nas mãos de governos eleitos democraticamente.

Mas envolver os bancos centrais na alocação de dinheiro para empresas ou setores com base em seu potencial de “ecologização” – comprando dívidas de empresas de energia hidrelétrica, mas não de empresas de petróleo, por exemplo – os força a tomar decisões políticas a quais o governo deveria ser responsabilizado por meio do sistema tributário. A prontidão do governo do Reino Unido em explorar a ferramenta de QE para terceirizar a alocação de capital a um órgão não responsável é, portanto, mais um passo em sua abdicação da responsabilidade de garantir uma economia saudável e sustentável.

Tradução de Anna Maria Dalle Luche, Brazil

Foto: Divulgação

Robert Skidelsky, membro da Câmara dos Lordes britânica, é professor emérito de economia política na Warwick University. 

Direitos Autorais: Project Syndicate, 2021.
www.project-syndicate.org

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