Covid-19 na América Latina: “golpes de estado estão no domínio do possível”, entrevista com Pierre Salama

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Num fórum de discussão, há dois meses, quatro ex-presidentes latino-americanos (Fernando Henrique Cardoso, Ricardo Lagos, Juan Manuel Santos, Ernesto Zedillo) alertaram: “A crise poderá ser causa de um dos episódios mais trágicos da história da América Latina”. O senhor concorda com esse diagnóstico? Não existem diferenças importantes entre esses países?

A primeira catástrofe é o número de mortos, quer seja no Brasil, no México, no Peru ou, agora, no Chile. Ainda mais porque os números reais são muito superiores aos oficiais. Segundo o Financial Times é necessário multiplicar os dados oficiais por 2 ou 3. Isso porque as pessoas que morrem em casa não são contabilizadas, sobretudo nas favelas, ou seja, aqueles que não têm acesso ou acesso fácil à medicina. A discriminação por origem social dos que são atingidos pela pandemia é particularmente forte devido aos fenômenos de aglomeração. Os pobres são os primeiros atingidos por esse tipo de difusão da pandemia. Não apenas porque eles têm menos acesso a medicamentos e a hospitais, mas porque apresentam mais comorbidades. Eles são os que mais sofrem com má alimentação, obesidade, colesterol e problemas cardíacos. É mais difícil para eles respeitarem as medidas de prevenção recomendadas, tais como lavar as mãos, usar máscara, respeitar o distanciamento social. A densidade populacional nas favelas é enorme. O acesso à água corrente é limitado. Para os mais pobres, que vivem na informalidade, trabalhar é uma questão de sobrevivência. Ficar confinado e não trabalhar é uma forma de morrer de fome com suas famílias. É uma situação perigosa. Dada sua maior vulnerabilidade, os pobres precisam de respostas imediatas e mesmo milagrosas. Muitos deles são membros de igrejas evangélicas. Os pobres também têm necessidade de esperança e tal esperança passa mais pela crença do que pela razão. Por isso, eles podem ser particularmente sensíveis aos discursos políticos – geralmente de extrema direita. No Brasil, por exemplo, Jair Bolsonaro denuncia todos os que os impedem de trabalhar, ou seja, todos os que propõe o confinamento. Esse discurso encontra ressonância, pois remete a necessidades vitais para eles, de modo que, apesar do tamanho do desastre sanitário e das propostas racistas e homofóbicas, Bolsonaro conserva um importante apoio popular, semelhante ao de Donald Trump nos EUA. Ele conserva um séquito de apoiadores entre os excluídos.

Para a esquerda isso significa que ela precisa mudar de software. Ela precisa adotar um discurso que fale a essas pessoas, já que, infelizmente, uma grande parte da esquerda tem um discurso que continua, para essa camada da população, bastante abstrato.

Desse modo, por exemplo, as lutas recentes na Argentina, no Brasil e no México contra o feminicídio, pelo direito ao aborto e ao casamento homossexual – que são lutas justas – se não forem acompanhadas de outras lutas mais clássicas como o aumento do poder de compra, a diminuição da miséria e do desemprego, não darão uma resposta a questões essenciais para os pobres e excluídos. Deixar-se-á a o caminho livre a todo tipo de discurso de extrema direita. É preciso, por exemplo, exigir não apenas os U$S 100,00 mensais (por cinco meses) concedidos por Bolsonaro, mas algo como o subsídio ao trabalhador em tempo parcial, colocado em prática na Europa; mesmo que em nível inferior por causa da escassez de recursos – desde que permita ao trabalhador viver e não o obrigue a arriscar sua vida indo trabalhar.

Certamente, a situação é diferente em cada país. Na Argentina, o governo recém eleito, opositor do governo conservador de Mauricio Macri que o precedeu, proibiu as demissões e colocou em ação um programa de ajuda direta ao setor informal. Isso, mesmo com o país mergulhado (já tinha mergulhado antes da pandemia) numa crise econômica e financeira. No México, medidas desse tipo foram anunciadas pelo governo “progressista” de Andrés Manuel Lopez Obrador, eleito há um ano. Contudo, não foram financiadas e o presidente não deseja ver aumentar o déficit através do aumento das despesas púbicas… O Peru foi o país da América Latina que, no início da pandemia, adotou a política mais solidária. Contudo, como havia uma grande concentração populacional em Lima, e como a informalidade é grande e as despesas com saúde pública são pequenas em relação ao PIB, os hospitais não puderam fazer frente ao avanço e, agora, surto da doença. Em geral, parece-me que, na maior parte dos países, reivindicações sociais essenciais são insuficientemente apoiadas. O que pode ser muito prejudicial.

A epidemia parece ter se instalado de maneira muito mais duradoura que na Europa, onde representa estar bem mais controlada. Isso não aumenta perigos de todos os tipos?

Todas as epidemias estão fadadas a desaparecer um dia. Os países latino-americanos estão sofrendo a última onda. Estão na situação em que se encontrava a Europa em abril. Porém, com despesas de saúde insuficientes, condições sanitárias precárias, ajuda insuficiente aos pobres e mais da metade da população no setor informal, o que implica que o custo social e humano tende a ser muito maior nesses países. O pico da pandemia não parece ter sido atingido. Mas como eu não sou virologista, nem tenho as receitas do doutor Raoult, não sei se se deve ser otimista ou pessimista sobre isso. Contudo, politicamente os riscos são altos, sobretudo para um país grande como o Brasil. Penso que existe espaço para respostas autoritárias. A extrema direita já está no poder, mas pode vir algo pior. Um golpe de estado está dentro do domínio do possível. Na Argentina, onde o governo de Alberto Fernandez herdou uma situação catastrófica produzida pela gestão conservadora anterior, isso também é possível. No México, país de tradição política laica, o presidente leva amplamente em conta os temas defendidos pelas igrejas evangélicas e não me parece improvável que ele assuma uma posição bem mais dura e autoritária frente aos problemas gerados pelo narcotráfico e pela sua incapacidade de gerir a economia. Na Colômbia, dirigida por um governo de direita, 800 mil imigrantes venezuelanos servem de bode-expiatório e são tratados como contaminados. Se posso dizer, isso é péssimo. Na Venezuela, a sorte de Nicolas Maduro vem de inúmeras fraturas da oposição, mas o país continua mergulhando em um desastre sem nunca atingir o fundo.

Em seu livro o senhor apresenta as grandes fases da história econômica da América Latina. Analisa especialmente os limites e as contradições das políticas de esquerda executadas durante os anos 2000. Como isso afeta a situação atual?

Em uma perspectiva de longo prazo, digamos pós-1980, é possível ver que os países latino-americanos não foram economias emergentes, ao contrário do que se dizia – era uma piada. Durante uma década, de 2003 a 2012-13, eles davam a impressão de ser emergentes. O crescimento de seus PIBs foi levemente superior ao dos países avançados. Mas, evidentemente, não ao da China nem ao dos demais países avançados nos últimos 40 anos. Nesse período todo, o crescimento dos seus PIBs foi muito inferior ao dos países avançados. São países que retrocederam ou entraram numa situação de estagnação de longo prazo. Eles são menos capazes de promover uma retomada e menos ainda de promover mobilidade social. As políticas redistributivas colocadas em prática nos anos 2003-2012-2013 certamente reduziram a pobreza, porém ela continuou em um nível relativamente alto. Em síntese, são economias doentes, sobre as quais recaiu uma pandemia. Mais ou menos como alguém que está se afogando e outra pessoa começa a enfiar cabeça dele na água.

A esquerda perdeu o bonde nos anos 2000? Sim e não. Ela teve a sorte de desfrutar de um boom das commodities. O que fez a restrição externa desaparecer. Contudo, a sorte pode também ser azar e, nesse caso, foi. Os governos progressistas puderam aumentar de maneira substancial o salário mínimo, ainda que não de forma generalizada (especialmente no México isso não aconteceu). Puderam, também, colocar em prática políticas distributivas. Os pobres puderam comer, comprar motos e geladeiras, o que foi importante. Lula chegou a afirmar que não se importava se isso era produzido pelo Brasil ou não, o importante era que os pobres podiam ter uma geladeira. Algo realmente importante, sobretudo em um país tropical. Contudo, não se desenvolveu uma política industrial. A aposta foi na reprimarização das economias. Os chineses queriam matérias primas e eles forneceram. Os preços e quantidades aumentaram. A “bonanza, el regalo del cielo”, o dom do céu como se diz em espanhol, permitiu evitar a restrição externa a que as políticas sociais conduziriam e, evidentemente, colocar o dinheiro em Miami, como fez a direita. Contudo, a esquerda não aproveitou esse momento para construir as bases do desenvolvimento futuro nesses países. Isso foi, em certa medida, um crime. As estruturas fiscais completamente regressivas não foram modificadas. Os sistemas tributários e as transferências sociais levaram a uma redução das desigualdades de renda, medidas pelo índice de Gini, da ordem de 15 pontos na França e de 11 pontos nos EUA (numa escala de 1 a 100). Mas de apenas 2 pontos na América Latina. Mesmo que o índice de Gini seja questionável, essa comparação é significativa. Os impostos são regressivos. No total, as desigualdades após os impostos e transferências sociais continuam mais ou menos no mesmo nível. Os governos de esquerda não fizeram reformas tributárias, algo que a própria Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe da ONU havia sugerido. Ao invés de uma política de industrialização, ajudaram e sustentaram a produção de matérias primas para exportação. Em síntese, algo que era positivo se tornou extremamente negativo. Esses países conheceram um início de desertificação industrial que cobra caro. Isso ocorreu nos governos Lula e Dilma, sendo que esse último tentou detê-lo. Já o governo Bolsonaro retomou com toda força essa política desertificação. O golpe da crise econômica atingiu esses países bem antes da pandemia. O Brasil experimentou em 2015 uma queda de 3,5% do PIB e em 2016 de 3,2%. Michel Temer chegou ao poder em 2016, pós a destituição de Dilma Roussef, e foi incapaz de obter a retomada econômica automática que esperava. A pandemia chegou em um contexto econômico péssimo e esses países estão em uma situação em que, segundo o Financial Times, os ganhos obtidos em 30 anos de lutas contra a pobreza foram reduzidos a nada. A esquerda latino-americana está sendo confrontada com a necessidade de fazer uma análise crítica de suas experiências e de imaginar um outro programa, o que não é fácil. No Brasil, os “lulistas” dizem que eles não irão criticar o Lula, pois isso seria fazer o jogo da extrema direita que está no poder. Fernando Haddad, que foi o candidato pelo Partido dos Trabalhadores contra Bolsonaro, é um social-democrata radicalizado, não é alguém que tenha carisma, e isso cobra um preço.

Em que consistem as políticas e as estratégias colocadas em prática pelos governos atuais? As diferenças entre os países são certamente muito importantes, mas não parece existir uma ruptura ou uma verdadeira mudança de direção?

No Brasil, existe um debate dentro do próprio governo. Uma facção das forças armadas é favorável a um retorno a políticas de tipo mercantilista, praticadas durante a ditadura militar dos anos 1960-70. Essa facção defende um plano Marshall, especialmente para o setor de infraestrutura. O ministro da economia, Paulo Guedes, principal representante da outra facção, homem forte do governo e antigo “Chicago boy”, quer acelerar as privatizações, como se não existisse uma pandemia. No México, o presidente Lopez Obrador é tão dependente e tem tanto medo de Donald Trump que se tornou um dos seus apoiadores. Aceitou bloquear o México aos imigrantes ilegais da América Central, que passam por esse país para chegar a América do Norte. Um outro problema, são as maquiadoras, montadoras que se beneficiam da isenção de impostos aduaneiros para reexportar produtos aos EUA. O Trump conseguiu que essas montadoras sejam consideradas empresas estratégicas e, desse modo, possam ser reabertas para que as indústrias americanas da General Motors, dependentes dos seus produtos, possam se reerguer. Tudo isso mostra quanto a política do governo mexicano continua seguindo um modelo antigo. Para justificar sua posição, o presidente do México, identificado como um presidente de esquerda e eleito com um programa de ruptura, finge, assim como Trump, que a pandemia já acabou. Na realidade, não haverá nenhum avanço possível sem uma resposta aos problemas de financiamento. A América Latina tem uma necessidade urgente de políticas de “quantitative easing” como as dos EUA e da Europa. Se não queremos que essa região do mundo se transforme em um barril de pólvora, isso é urgente e indispensável. Os argentinos estão na primeira linha para obter um tratamento da dívida, que se acumulou novamente com Mauricio Macri para financiar as saídas de capital e que é uma dívida verdadeiramente “vergonhosa”. Eles não são os únicos e essa questão continua sendo pouco evidente. Certamente, nem tudo se reduz a esse cenário, mas esses pontos são incontornáveis.

Quais são as razões para não sermos pessimistas se somos sul-americanos?

Por enquanto, não há ruptura com o modelo dominante. Contudo, a história se desenvolve de um modo mais ou menos subterrâneo. Se alguém me perguntasse as vésperas da pandemia como estava politicamente a América Latina, eu diria que a onda da direita, que domina desde 2012-2013, estava perto de terminar. Algo que ficou claro no Chile através dos grandes protestos contra a desigualdade econômica, pelos serviços púbicos e pela demissão do presidente Piñera. Aconteceram também protestos importantes contra o feminicídio e pelo aborto na Argentina e no Brasil. Em Bogotá foi eleita como prefeita pela primeira vez uma mulher que assume publicamente sua homossexualidade. Em síntese, penso que uma onda de esquerda estava chegando na América Latina, mas a pandemia a bloqueou. Contudo, suas raízes seguem existindo. Vão reaparecer soluções para reindustrialização, poderá haver um retorno a práticas protecionistas e não de proteção a rentistas. Porém, tudo isso passa por rupturas que eu sou incapaz de definir precisamente. Evidentemente, existem outros movimentos de ruptura em marcha também do lado da extrema direita. Os evangélicos me deixam particularmente inquieto. Eles retomam as ideias de que a democracia não é a via a ser seguida e que não se deve ajudar os pobres porque eles são preguiçosos, isso acontece mesmo com os evangélicos tendo uma grande influência exatamente entre os pobres e excluídos. A esquerda reencontra uma certa capacidade de se dirigir a classe média e a reassumir seu compromisso com algumas das exigências dessa parcela da população. Eu ficarei, entretanto, mais otimista quando a esquerda retomar sua capacidade de diálogo com a classe trabalhadora e, especialmente, como os informais que constituem dois terços da população latino-americana. Não se trata somente de ter um projeto bem definido, mas de ter pessoas capacitadas a levar a cabo um projeto que ainda não existe.

Publicado originalmente em http://www.regards.fr/monde/article/interview-de-pierre-salama-l-amerique-latine-et-la-pandemie

Tradução: Bruno Roberto Dammski

Foto: Arquivo/ Agência Brasil

Pierre Salama é professor emérito Universidade de Paris XIII, CEPN-CNRS UMR 7234, último livro, 2014, Des pays toujours émergeants?, edição La documentation française, coleção : Doc de bolso, aberto ao debate, sob impressão, com Mylène Gaulard, 2019, Economie politique de l´émergence, l´Amérique latine, coleção referência, edição La découverte.

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