Bilionários do mundo incomodados com essa coisa chamada sociedade, por Andrés Ferrari

Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on whatsapp

As grandes corporações que pagam pouco ou nada de impostos – refletindo uma visão individualista que ignora o empobrecimento da sociedade na qual enriquecem – serão afetadas pelo aumento de impostos proposto por Biden.

“O empresário só é tolerável na medida em que se possa argumentar que seus ganhos guardam alguma relação com o fato de que, aproximadamente e em certo sentido, suas atividades contribuíram para a sociedade.”

John Maynard Keynes

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, anunciou um aumento de impostos, para grandes corporações e indivíduos que ganham no mínimo um milhão de dólares, com o objetivo de financiar seu mega plano econômico de infraestrutura social, emprego e gastos sociais.

Embora Biden tenha chamado atenção ao propor um grande plano econômico, ele não é uma voz isolada. Há um ano, o Financial Times, um jornal tradicional, vem defendendo a necessidade de mudanças radicais na gestão econômica dos governos capitalistas, apontando para a necessidade de investir em serviços públicos e de proteger o mercado de trabalho.

O Fundo Monetário Internacional também acaba de expressar a mesma visão. Sob o título “Dê uma chance a todos”, no Blog de Diálogo em Profundidade do FMI, três de seus analistas – David Amaglobeli, Vitor Gaspar e Paolo Mauro – afirmam que a pesar do tremendo impacto da pandemia na economia “estar exacerbando o mal da desigualdade”, “a desigualdade é uma condição pré-existente que tem agravado o impacto do COVID-19”.

Além disso, eles afirmam que “as disparidades no acesso aos serviços básicos contribuíram para os resultados desiguais em termos de saúde pública” porque “os grupos mais vulneráveis ​​são os mais duramente atingidos pela pandemia”. Tais grupos correspondem aos trabalhadores com baixa qualificação, aos jovens, aos grupos étnicos desfavorecidos e aos informais – isso “especialmente nos países mais pobres”.

Eles concluem dizendo que “a crise do COVID-19 demonstrou a importância capital de ter uma boa rede de segurança social, capaz de ser ativada rapidamente para fornecer assistência emergencial as famílias em dificuldade”. Isso exige políticas pré-distributivas e redistributivas. “As primeiras, garantem acesso a serviços públicos básicos e empregos de qualidade, o que possibilita reduzir a desigualdade de renda antes da redistribuição por meio de impostos e transferências”. Apontam também que a progressividade tributária deve aumentar, através do aumento dos impostos sobre a renda das pessoas físicas, do capital e dos imóveis.

O VENENO ESPECÍFICO DO IMPOSTO

Não só isso. A preocupação com o futuro das principais economias capitalistas é tão grande para o FMI, que chega a propor a aplicação de um imposto sobre sucessões, o ‘tabu’ dos impostos.

Em 1936, na conclusão da Teoria Geral, Keynes afirmava que “o crescimento da riqueza, longe de depender da abstinência dos ricos, como se costuma supor, é dificultado por ela. Desse modo, uma das principais justificativas sociais para a grande desigualdade de riqueza é posta de lado… O que afeta de modo particular o direito a herança: uma vez que existem certas justificativas para a desigualdade de renda que não se aplicam à desigualdade de herança.”

A concentração da riqueza no capitalismo se justifica porque recompensa o esforço de cada indivíduo. Mas, como aponta Keynes, isso não faz sentido quando se fala de herança. Em novembro de 2017, The Economist abordou o assunto apresentando o dilema de “como equilibrar o desejo das pessoas de legar ativos com a injustiça da herança”, observando que esse imposto “contém um veneno específico” e “é considerado o menos justo tanto pelos britânicos como pelos americanos.”

Para essa publicação, a questão opõe “dois princípios liberais fundamentais: 1) o de que os governos devem permitir que as pessoas disponham de suas riquezas como bem entenderem. 2) o de que uma elite perene e hereditária torna uma sociedade doente e injusta. Como escolher entre eles?” Para The Economist, “um sistema tributário justo e eficiente busca incluir impostos sobre herança, não eliminá-los”.

Contudo, existe, realmente, uma tendência a eliminá-los. Desde a revolução neoliberal de Ronald Reagan na década de 1980, esses impostos foram reduzidos. Donald Trump tentou eliminá-los diretamente. A professora de Direito da Universidade de Nova York, Lily Batchelder, em 24 de junho, denunciou, no New York Times, que nos próximos anos acontecerá uma transferência de herança de US$ 84 bilhões nos Estados Unidos – o que corresponde a 81% de toda a riqueza das famílias no país.

Apesar disso, o imposto sobre herança vem diminuindo, não apenas nos Estados Unidos, mas em vários países capitalistas. Entre os países da OCDE, o Japão é o que aplica a maior taxa (55%), seguido pela Coréia do Sul (50%) e pela França (45%). Nos Estados Unidos e no Reino Unido a alíquota é (40%), na Espanha (34%) e na Irlanda (33%). Já na Bélgica e na Alemanha é de (30%). Vários países não cobram esse tipo de imposto – Austrália, Áustria, Canadá, etc. – ou cobram menos de 10% – Suécia, Itália, Polônia. Desse modo, em média a alíquota fica em torno de 15%, segundo estudo da Tax Foundation.

Na prática, entretanto, os pagamentos de tais impostos, como destacam The Economist e Batchelder, são muito mais baixos, devido a várias formas de evasão. Nesse sentido, o imposto sobre herança não difere de outros impostos, já que os ricos conseguem formas de evitar pagá-lo. Criticado por seu “impostão” para os ricos, Biden declarou recentemente que: “Há 51 ou 52 empresas da Fortune 500 que não pagam um único centavo de imposto há três anos”. Isso é ainda mais relevante quando considerado em conjunto com a advertência da atual secretária do Tesouro dos EUA, Janet Yellen, de que 150 milhões de pessoas podem estar na pobreza se o governo não fizer nada para evitá-lo.

Na mesma linha do FMI, Susana Ruiz, líder do grupo Política Tributária Internacional, afirmou que o impacto da pandemia só pôde gerar o grave resultado atual pelas péssimas condições de desigualdade já existentes. Na verdade, ela aponta que a riqueza dos bilionários aumentou globalmente em “espantosos US$ 3,9 trilhões entre março e dezembro de 2020”.

UFA! A SOCIEDADE

A sonegação de impostos no topo da pirâmide social do capitalismo ocidental atual é chocante. Embora a desigualdade entre países ricos e pobres seja alarmante, nas últimas décadas, sob o reinado do capitalismo neoliberal, ela se tornou alarmante também dentro dos países desenvolvidos, a começar pelos Estados Unidos.

Após o anúncio de Biden, Chuck Grassley, senador de Iowa e líder republicano no Comitê de Finanças, argumentou que o efeito do aumento de impostos sobre os ricos “reduzirá o investimento e causará desemprego”. Contudo, o resultado de cortes de impostos anteriores não chegou à sociedade e os defensores dessa visão argumentaram que foi por problemas gerados pelo déficit fiscal… causado pela redução dos impostos. Assim, exigem o corte dos gastos sociais e a flexibilização das relações de trabalho.

Vários estudos relatam que os impostos não cobrados foram evadidos para vários paraísos fiscais. É por isso que Yellen propôs a implementação de um imposto mínimo global para as grandes corporações. A situação é tão absurda que as empresas criam domicílios em países onde se cobra menos impostos, para não pagá-los no país em que geram seus lucros. Normalmente os países selecionados para isso são pequenos, pouco populosos e podem se beneficiar da baixa arrecadação. Assim, por exemplo, na União Europeia tais corporações se instalam na Irlanda, na Suíça ou Luxemburgo, embora os seus lucros sejam gerados em países populosos e com economias dinâmicas.

A oposição entre ultra-ricos e a sociedade apresenta números alarmantes. O parlamentar trabalhista Zarah Sultana afirmou no Twitter que o Reino Unido tem 147 bilionários e 8.400.000 pessoas vivendo graças a programas de assistência alimentar. Em seu artigo no Project Syndicate, Robert Skidelsky relata que 14,5 milhões de britânicos (22% da população) vivem abaixo da linha da pobreza. Em 12 de março, o Washington Post relatou que a riqueza dos “9 maiores bilionários” da América – entre eles Elon Musk, Jeff Bezos e Mark Zuckerberg – aumentou mais de US$ 360 bilhões durante a pandemia, enquanto o desemprego disparou, atingindo 14,7%, o maior percentual desde a Grande Depressão de 1930 e afetando 20,5 milhões de americanos.

Enquanto qualquer objeção ao neoliberalismo for considerada um ataque “comunista” ao capitalismo, tais medidas continuaram fomentando um capitalismo que exclui cada vez mais pessoas. Pessoas que, em geral, não manifestaram outra coisa senão o desejo de viver num capitalismo… melhor.

Grassley concluiu dizendo: “Se não está quebrado, não conserte”. O que precisa acontecer para Grassley considere que está quebrado?… Ou talvez essa visão tenha como expressão a afirmação de Margaret Thatcher de que “só existem indivíduos e não essa coisa chamada sociedade “.

Tradução: Bruno Roberto Dammski

Foto: Divulgação/ Envato

Andrés Ferrari Haines é professor Adjunto do Departamento de Economia e Relações Internacionais, Faculdade de Ciências Econômicas e do Programa de Pós-graduação em Estudos Estratégicos Internacionais (PPGEEI-UFRGS). Integrante do Núcleo de Estudos dos BRICS (NEBRICS-UFRGA) e Poder Global e Geopolítica do Capitalismo (aferrari@ufrgs.br).

O seu apoio é muito importante

Faça uma assinatura. Participe desse projeto. Ajude e manter e aperfeiçoar o portal América Latina

Leia também