Argentina e Brasil, dois irmãos opostos frente ao Covid-19, por Maria Haro e Ricardo Kotz

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Em 31 de dezembro de 2019, as autoridades chinesas informaram a Organização Mundial da Saúde sobre um conjunto de 41 pacientes com uma pneumonia misteriosa. A maioria estava conectada ao Mercado de Frutos do Mar de Huanan, um mercado de animais vivos na cidade de Wuhan, província de Hubei. Desde então, o Coronavírus vem se espalhando rapidamente pelo mundo, afetando mais de 177 países e reivindicando mais de 280.000 vidas (10 de maio). A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou o surto como uma Emergência em Saúde Pública em 30 de janeiro de 2020 e o reconheceu como uma pandemia em 11 de março.

Políticas de contenção no mundo

Como precursor dos tipos de medidas que mais tarde seriam introduzidas em todo o mundo, Wuhan, uma cidade com cerca de 11 milhões de pessoas, foi colocada sob bloqueio imposto pelo Estado em 23 de janeiro. Outras cidades na província de Hubei logo seguiram o exemplo, adotando restrições semelhantes. As medidas abrangentes, que afetaram mais de 60 milhões de residentes de Hubei, foram anunciadas em toda a China. 

Em termos gerais, os esforços para impedir a propagação do vírus incluem restrições de viagem, quarentenas, toque de recolher, fechamento de escolas, controle de riscos no local de trabalho, adiamentos e cancelamentos de eventos e fechamento de instalações. A extensão das medidas depende da capacidade e recursos do país para implementar com sucesso essas políticas. Em Wuhan, após 2 meses de estrito bloqueio, a atividade econômica recomeça no país asiático. Nesta linha, é possível adicionar com nuances as experiências da Coréia do Sul e Cingapura.

No entanto, poucos países decidiram não implementar medidas de distanciamento social no início das primeiras infeções por Covid-19 em seus países. Na Itália, Giuseppe Sala, prefeito da cidade de Milão, promoveu primeiramente a campanha “Milano non si ferma” – “Milão não para”. As consequências foram terríveis. No final, a Itália implementou o bloqueio e o atraso acabou por custar a vida de mais de 10.000 pessoas. Como Borelli, o chefe do Departamento de Proteção Civil da Itália declarou: “O vírus é mais rápido que a nossa burocracia”.

De maneira semelhante, no Reino Unido, Boris Johnson esperava anteriormente que pudesse contar com grandes proporções – talvez 60% – da população ficando doente, melhorando e ficando imune a criar alguma imunidade de rebanho na população do Reino Unido. No início, o governo disse que qualquer pessoa com sintomas de resfriado deve ficar em casa por sete dias, mas viver a vida normalmente. De acordo com relatos da mídia, uma das principais evidências da mudança foi um novo artigo de Neil Ferguson, professor do Centro MRC de Análise Global de Doenças Infecciosas do Imperial College, que analisou dados da Itália e o número impressionante que a epidemia está afetando seu sistema de saúde. Constatou-se que 30% dos hospitalizados estão agora necessitando de cuidados intensivos. O artigo destacou duas estratégias: a) mitigação, que se concentra em retardar, mas não necessariamente em impedir a propagação da epidemia – reduzindo a demanda de assistência médica e protegendo aqueles com maior risco de doenças graves contra infecções; e (b) supressão, que visa reverter o crescimento da epidemia, reduzindo número de casos a níveis baixos e manter essa situação indefinidamente”. Depois de algumas semanas, de uma fraca estratégia de mitigação, o próprio Boris Johnson apresentou diagnóstico positivo de COVID-19, ficou em terapia intensiva. Sua recuperação veio da mão de um “novo” Boris Johnson que mudou a forma de ver a pandemia, depois de ele mesmo ter sido vítima do vírus.

O exemplo mais assustador dessa corrente, foi o atraso nas políticas de distanciamento social nos Estados Unidos. Depois que a doença estava no estado de Washington e a Organização Mundial da Saúde relatou um alto risco global, Trump disse que não havia preocupações com uma pandemia. No dia em que o mercado de ações despencou, Trump disse que o vírus estava sob controle nos EUA, e o mercado estava parecendo muito bom para ele. Alguns dias depois de declarar uma emergência nacional, Trump disse que “sempre soube” que era uma pandemia e finalmente implementou algumas políticas de distanciamento social. Atualmente, os Estados Unidos é o país maior com pessoas infetadas com Covid-19, apresentando mais de 1.35 milhão de casos e mais de 80.000 mortes (dados correspondentes ao dia 10 de maio). A situação está escorrendo das mãos de Trump, que já chegou até recomendar o uso de desinfetante para o tratamento do Covid-19. Nem todo o seu poder de se impor na “geopolítica” dos respiradores tem ajudado significativamente a conter o vírus. Além disto, o maior potencia saiu do multilateralismo, desfinanciando a OMS no meio da crise sanitária.

Essa crise está redefinindo o papel do Estado na proteção da saúde pública. Prova disso é a atual nacionalização de hospitais privados na Espanha. O presidente Emmanuel Macron, na França, fez uma forte declaração em favor do modelo francês do Estado de bem-estar social, disse que é necessário “questionar o modelo de desenvolvimento em que nosso mundo está envolvido há décadas … assistência médica gratuita, sem condições de renda, carreira ou profissão, nosso estado de bem-estar não são custos ou encargos, mas bens preciosos. São bens indispensáveis quando o destino ocorre, o que esta pandemia revela”.

Brasil e Argentina, dois caminhos opostos

Já nos dos maiores países sul-americanos, o Brasil e a Argentina, os governos implementaram caminhos completamente opostos, Alberto Fernandez, presidente da Argentina declarou: “Se o dilema é a economia ou a vida, eu escolho a vida”, enquanto Bolsonaro expressou: “Isso é histeria. Algumas pessoas vão morrer. Mas não podemos parar a economia”.

Fernandez assumiu a presidência do país em dezembro de 2019. O governo anterior liderado por Mauricio Macri aumentou a dívida externa de 41% para mais de 90%, a pobreza subiu para 35% da população, a inflação é superior a 50%, as taxas de juros atingiram 70% e a desvalorização da moeda nacional foi quase 400 por cento. O país está próximo de declarar default da dívida externa. A situação era já delicada e o que menos se precisava era ainda uma crise sanitária. 

Mesmo assim, o governo foi muito claro na sua decisão. Afirmou Fernandez: “Escolhemos vidas”. A decisão de Fernandez foi uma das mais prematuras do planeta. A Itália ficou em quarentena em 9 de março com mais de 400 mortes, a Espanha no dia 14 com 120 e a França no dia 17 com 148. Quando o plano foi posto em prática na Argentina em 20 de março, apenas duas pessoas morreram de coronavírus e pouco mais de 100 foram infectados, de acordo com registros oficiais. Até o dia 10 de maio havia cerca de 6000 casos e 300 mortes, cifras muito baixas em comparação com outros países. A imagem do presidente é uma das mais altas da história recente, com mais de 90% de aprovação. 

Fernandez implementou políticas de auxílio social para os desempregados e trabalhadores informais, ajudando às empresas pagar salários, mas as contas do Estado não estão fechando. Deputados estão cogitando a possibilidade de taxar grandes fortunas, o 1% mais ricos e influente, da população. Será uma investida interessante, veremos até onde a crise sanitária permite avançar com a redistribuição, um dos grandes problemas que nunca fez parte da agenda e todas as presidências evitaram sistematicamente.  

Já no Brasil, até o dia 10 de maio, os casos somam 160.000 pessoas infetadas com Covid-19 e mais de 11.000 mortes (oficiais, já que há grandes dúvidas sobre a conta de óbitos), entre eles profissionais de saúde e políticos. Bolsonaro está gerando uma ruptura nas instituições do Brasil. Por um lado, os governadores dos partidos da oposição e até da coalizão de Bolsonaro, que lidam diretamente com a emergência do Covid-19, estão criticando o presidente e indo contra sua proposta de parar o bloqueio e abrir escolas e empresas. Vinte e seis (26) dos 27 governadores alertaram que permaneceriam fiéis às recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) (Benites, 2020a). 

Segundo informações da imprensa, as Forças Armadas brasileiras enviaram sinais de alerta às reações do presidente Jair Bolsonaro frente à crise do coronavírus. Representantes da Aeronáutica, Exército e Marinha declararam ao vice-presidente General Hamilton Mourão, que o mesmo poderia contar com seu apoio se Bolsonaro deixasse o cargo, seja por impeachment ou renúncia. Membros do Congresso Nacional de diferentes partidos começaram a entrar com pedidos de impeachment, que chegaram a vinte e sete (27). Mas ainda não há consenso parlamentar suficiente. Bolsonaro foi inclusive contra as orientações do seu próprio ministro de saúde, Luiz Henrique Mandetta, que no meio da pandemia, foi demitido.

Recentemente o governo de Jair Bolsonaro enfrentou mais uma crise: a saída do ministro da justiça Sérgio Moro, conhecido pela sua atuação na operação Lava Jato, uma operação que foi intensamente divulgada devido às suas ações anticorrupção, ainda que as mesmas atingissem fundamentalmente os partidos de esquerda no espectro político brasileiro, além de algumas lideranças de menor visibilidade na direita. 

Em seu pronunciamento de demissão, Sérgio Moro acusou o Presidente de crimes, o que aumentou a instabilidade no cenário político nacional. Moro era visto como um ícone que dava legitimidade à postura anticorrupção que Jair Bolsonaro ostentava de forma ilegítima, mas que era largamente apoiada pela parcela da população que continua a avaliar positivamente o governante. 

Pesquisas realizadas no início de abril, antes da saída de Sérgio Moro, mostravam que 28% da população avaliava o governo de Bolsonaro como bom ou ótimo, sendo que 42% avaliava o seu Governo como ruim ou péssimo. Pesquisas nas redes sociais apontam que 70% da população viu com maus olhos o governo após a saída de Sérgio Moro, o que deve aumentar ainda mais a má avaliação de Bolsonaro, que se firma em bases sociais cada vez mais instáveis. 

O plano de liberalização econômica e desmonte dos direitos dos cidadãos colocados à frente pelo governo através do seu Ministro Paulo Guedes, um dos sustentáculos do Presidente, vem sendo contestado. A ala militar brasileira, liderada pelo ministro-chefe da casa Casa Civil, Walter Braga Netto, apresentou um plano de Estado para a reativação da economia devido à crise do Covid-19. Embora ainda não tenha sido publicado com diretrizes claras, prevê-se um aumento dos investimentos públicos na ordem de 30 bilhões de reais, visando estimular o consumo e a produção, uma medida de viés keynesiano, prevista a continuar até o ano de 2023. Entretanto, esta é uma tímida iniciativa considerando o imenso desafio de reativação da economia brasileira e as previsões de uma grande crise econômica global. O Ministro Paulo Guedes continua a se pronunciar de forma contrária à expansão dos gastos públicos no Brasil. 

Os panoramas

A conjuntura que está se delineando devido à ameaça global do coronavírus trará imensos desafios para o mundo e sobretudo para as periferias, entre eles os países latino-americanos, vários dos quais já enfrentavam crises econômicas antes da pandemia. Este fator provavelmente prejudicará a capacidade de articular estratégias a nível internacional, à medida que as economias locais ficarão mais preocupadas com os seus contextos domésticos. 

Muitos países, entre eles a Alemanha, estão planejando nacionalizar empresas caso a situação se agrave muito incontrolável. Isso abre uma janela para uma possível nacionalização do tecido produtivo, sobretudo em países maiores como Argentina e Brasil. Autoridades projetam uma queda de 2.2 % no PIB global em 2020, evidenciando esta tendência. A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe projeta uma queda de 5.3% no PIB da América Latina no ano de 2020. Esta seria a maior contração sofrida pela região desde o ano de 1930, demonstrando a gravidade da situação e os enormes desafios que vêm pela frente. 

A instabilidade econômica poderá acentuar a instabilidade política. Se este cenário se consolidar, deverá aumentar o risco de erosão das instituições em diversas democracias locais. Na Argentina e no Brasil os contextos são opostos, e podem levar a consequências distintas. Fernandez terá que contornar a crise econômica visando à redistribuição e redução das desigualdades, captando recursos dos mais ricos. Para isto enfrenta a difícil tarefa de manter o apoio popular em um país onde a mídia é extremamente concentrada e defende de forma recorrente os interesses das camadas mais ricas do país. 

No Brasil, a crise política parece ser inevitável, à medida que a conjuntura econômica vai piorando, sendo que este ainda não é o momento mais difícil da crise. A oposição deveria se unificar para apoiar e manter o sistema democrático. A cautela nunca é demais afinal, como a política no Brasil vem demonstrando nestes últimos anos, a situação sempre pode piorar. 

Esta é uma conjuntura que exige extrema cautela e conscientização popular. Uma vez passado o surto epidêmico, é importante que sejam reforçadas políticas e estratégias de Estado, pensando no longo prazo. O estímulo às economias locais não deve ser pensado apenas através da via do consumo, mas igualmente visando investimentos em infraestrutura, o aumento da produção industrial e a promoção de políticas públicas nas áreas de ciência e tecnologia. 

A crise do Covid-19 evidencia a necessidade de políticas industriais e de desenvolvimento em países emergentes, que perderam capacidade produtiva até mesmo em itens básicos como máscaras de proteção e igualmente em relação à produtos com certo nível tecnológico, os respiradores. A crise do Covid-19 evidencia a importância e o retorno do Estado como um importante ator para a promoção do desenvolvimento, após uma conjuntura regional que viu uma onda de governos de cunho neoliberal na América Latina. 

Foto: Alex Pazuello/ Semcom

Maria Jose Haro Sly é socióloga, nascida na Argentina. Mestre em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina e mestranda em Estudos Contemporâneos da China pela Escola da Rota da Seda, da Renmin University of China.

Ricardo Kotz, mestrando no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina, na linha de Economia Política Internacional, cuja pesquisa versa sobre as cadeias globais de valor como instrumentos para o desenvolvimento do Brasil, sob a perspectiva da análise dos sistemas-mundo.

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