A legitimidade e o retorno ao caminho indígena: uma entrevista com Hugo Siles Núñez del Prado, por Maria Haro Sly

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Estou escrevendo esse artigo na Argentina, onde a vitória do Movimento para o Socialismo (MAS) nas eleições bolivianas foi uma grande surpresa. Parece ser um completo fracasso da intervenção estadunidense e outro golpe no neoliberalismo na América Latina. O ex-ministro da Economia do presidente Evo Morales, Luis Arce e o ex-ministro de Assuntos Internacionais, David Choquehuanca, ganharam as eleições no primeiro turno com 54% dos votos.

A Bolívia estava crescendo economicamente, lutando fortemente contra a pobreza e melhorando a vida dos povos indígenas – considerados desde a época colonial, cidadãos de segunda ou terceira classe. Morales foi o primeiro líder indígena na história da Bolívia a chegar à presidência, algo surpreendente considerando que 60% da população desse país é indígena. A Bolívia levou a cabo muitas inovações políticas ao fundar um “Estado Plurinacional” e ao incorporar em sua Nova Constituição o conceito Bem Viver (Sumak Kausay), um conceito indígena milenar, que leva em conta a relação do homem com a natureza.

Com o golpe de 10 de novembro, apoiado pelos EUA e pela Organização dos Estados Americanos (OEA), Morales e seu ex-vice-presidente Álvaro García Linera se exilaram.

Para compreender as eleições e os grandes desafios que o novo governo tem pela frente, o ex-ministro de autonomias e professor da Escola Anti-imperialista das Forças Armadas, o Sr. Hugo Siles Núñez del Prado, respondeu essa entrevista.

Sly: Como o MAS e o povo boliviano estão vivendo essa volta a poder depois do golpe?

Siles: Os resultados de domingo, 18 de outubro, devolveram a esperança a muitas pessoas na Bolívia, pessoas que estiveram confinadas não apenas por causa da pandemia, mas também pelo grau de vulnerabilidade dos direitos humanos, da perseguição política , pela repressão que passou a reinar na Bolívia depois da chegada ao poder – de uma maneira muito questionável, com golpe de Estado e ameaças das forças armadas – de um governo que substituiu, através da força policial, um governo democraticamente eleito. Nesse cenário, o resultado das últimas eleições devolveu a esperança, o futuro, a tranquilidade e o sorriso ao povo. Dentro de pouco tempo se instaurará um governo eleito pelo voto popular de pelo menos 54% da população. Há um sentimento de esperança e emoção em muitas partes da Bolívia. Há também uma convicção entre os que irão assumir a presidência de que é o momento de unir o país. Não se pode ter uma administração revanchista ou de prisões em massa. O mais importante, já disseram os protagonistas, é tomar as medidas necessárias para reativar a produção e reinstalar o modelo econômico, social, comunitário e produtivo deposto. A Bolívia funcionou como um relógio durante toda a última década. O importante é retomar essa estabilidade econômica e o emprego. Para isso, o mais urgente é trabalhar visando tais objetivos. Há um ambiente de muita fé e esperança. Ambos os eleitos, presidente e vice, têm um grande respaldo e receberam votos, inclusive, de boa parte da classe média – que apoiou o retorno do MAS e a estabilização da economia. O povo votou e se inclinou em direção ao MAS, em vez de voltar-se para Carlos Mesa e sua proposta de recuperação econômica.

Sly: O que levou o povo boliviano a voltar para progressismo, a organização, a cultura, a economia?

Siles: O retorno do progressismo na Bolívia pode ser visto como consequência do péssimo e funesto governo transitório da Sra. Añez que deixa como saldo, por exemplo, 8.500 mortos pelo COVID-19, 35 pessoas massacradas em Sacaba e Senkata, perseguição política, repressão policial e militar, corrupção e todo tipo de desatino em termo políticas públicas. A própria candidatura da Sra. Añez em um momento em que a Bolívia atingia 12% de desemprego pareceu uma má estratégia. Tudo isso culminou em uma resistência social e cidadã, urbana e rural, que deposita suas esperanças nas candidaturas e propostas mais próximas que conhece. E o mais próximo que se conhece é a Bolívia da última década – sua estabilidade, seu nível de crescimento e de emprego, a melhora da qualidade de vida. Tudo o que a Bolívia alcançou, com acertos e erros, deixava evidente um país viável, com menos discriminação, com menos rejeição entre os próprios bolivianos. Tudo isso estava fresco na cabeça das pessoas, o que era um indicador da possibilidade de se recompor uma opinião pública favorável a apoiar um governo de esquerda cuja cabeça fosse Luis Arce, ex-ministro da Economia, que tinha a melhor proposta alternativa para poder tirar a Bolívia da atual situação de caos social e econômico em que se encontra. Luis Arce foi muito pragmático em suas propostas e explicou claramente de onde obterá os recursos para poder voltar ao conhecido modelo econômico, produtivo, social e comunitário que funcionou na Bolívia. Em síntese, a economia falou mais alto, ela é a principal preocupação das pessoas e, por isso, Luis Arce é visto, como maior grau de confiança, como alguém que pode recuperar a economia e retomar o desenvolvimento social na Bolívia.

Sly: O que significa essa eleição para a Bolívia e para a região?

Siles: A vitória do MAS, domingo passado, significa, para a Bolívia, retomar o modelo de desenvolvimento produtivo, econômico, social e comunitário, bem como voltar aos níveis de crescimento e estabilidade que alcançou em mais de uma década. É devolver aos cidadãos bolivianos a plenitude de seus direitos democráticos, de poder continuar com uma agenda – em direção ao bicentenário – que implique em: alcançar melhores resultados educativos e sanitários, aprofundar uma agenda de industrialização que agregue mais valor a seus recursos naturais, melhorar seus serviços públicos, sua infraestrutura e sua qualidade de vida. Em outras palavras, voltar a programas e planos que estavam trazendo resultados concretos. Claramente, isso vai ter repercussões, também, na região. A pandemia e o confinamento geraram, em vários países da região, mobilizações e mal-estar devido ao cerceamento de direitos e ao comportamento autoritário de muitos governos. Isso pode levar a conscientização social, algo que na Bolívia se manifestou através do voto. Esse país, através do voto, rejeitou a corrupção e o governo transitório da Sra. Añez, devido a própria crise gerada por esse governo e reconduziu, de forma cidadã, o MAS ao poder. Na região, o exemplo da Bolívia pode ter efeitos no Chile, em seu plebiscito e nas suas eleições, tanto no curto como no médio prazo. No Brasil pode contribuir para a volta do Partido dos Trabalhadores ao poder depois do governo funesto de Jair Bolsonaro. O que aconteceu na Bolívia pode ser uma contribuição extraordinária para a volta de governos progressistas em várias latitudes do continente.

Sly: Evo conseguiu fazer um sucessor, um dos grandes problemas dos governos progressistas latino-americanos. Qual será a contribuição de Luis Arce? Que papel desempenharam Evo e Linera no novo governo?

Siles: A Bolívia alcançou os níveis de desenvolvimento social, econômico e estabilidade em que se encontrava em 2019 em meio a um processo de industrialização de seus recursos naturais. Havia toda uma agenda preparada até 2025. Uma agenda com planos e roteiros para os governos que sucederiam a Evo. O próprio Evo poderia cumprir essa agenda. A candidatura de Luis Arce foi uma decisão muito acertada de Evo Morales. Ele foi o impulsionador da candidatura de Luis Arce a presidência e as organizações apoiaram a candidatura de David Choquehuanca. Luis Arce foi o ministro que esteve mais tempo a frente da economia e das finanças do país. Implementou o modelo de desenvolvimento econômico, social, comunitário e produtivo. Foi o ministro mais reconhecido internacionalmente pelas vitórias que exibia nos organismos financeiro-econômicos internacionais. Além disso, a economia e o desenvolvimento no interior do país foram visíveis e notáveis sob sua gestão. Para garantir a continuidade desse processo de mudança, era necessário trazer à tona o tema econômico, principal preocupação do povo boliviano. Havia um reconhecimento social e cidadão do trabalho feito por Luis Arce, logo, com a candidatura de Arce, o MAS trouxe para primeiro plano o melhor de sua gestão: o crescimento econômico, a redução da pobreza e o desenvolvimento da Bolívia. Essa sucessão obtida por Luis Arce é de continuidade e aprofundamento, ou seja, todo o trabalho de Evo foi sem dúvida um grande acerto. O próprio posicionamento de Evo em favor da candidatura de Arce foi um grande acerto, que levou o MAS a reproduzir as vitórias impactantes que teve Morales: 54% em 2005, 67% em 2009 e 64% em 2014. Luis Arce teve 54% dos votos.

Outro grande acerto foi a campanha, Arce apresentou uma proposta para tirar a Bolívia da atual crise econômica e pandêmica, desta situação terrível que atravessa o povo boliviano com um aumento do desemprego, de 4% para 12%, e da fome, bem como com o fechamento de várias empresas. Houve uma série de medidas inadequadas tomadas pelo governo transitório da Sra. Añez. Arce soube comunicar muito bem suas propostas de desenvolvimento econômico, de aumento da produção, da construção de obras públicas e da criação de cupons para a parcela da população que não teve renda durante meses. Previu também um imposto sobre as grandes fortunas, o qual poderá financiar a terrível situação pela passa a Bolívia. Outro assunto estratégico é assegurar a possibilidade de dispor de vacinas contra o COVID-19 para a população boliviana. Arce dará, sem dúvida, continuidade a todos os processos de investimento em infraestrutura, saúde e educação iniciados por Evo. Em outras palavras, dará continuidade ao modelo de desenvolvimento boliviano e voltará a estabilizar a economia.

O papel de Evo e Álvaro é fundamental nesse processo de mudança. Em que é necessário, também, formar novas lideranças. É necessário todo um empreendimento de formação de novos líderes, de formação política e ideológica. O MAS tem representação territorial e é indispensável a formação de novas lideranças para que se possa dar continuação as mudanças. O apoio majoritário da população ao MAS implica em uma grande responsabilidade de evitar equívocos. É preciso trabalhar na formação de novos líderes e essa será uma das primeiras ações.

Evo, por sua parte, manifestou que ele irá ajudar na formação de lideranças. Muitos pensam que ele irá ocupar um ministério, mas se enganam. Evo chegará em alguns meses e ocupará a presidência do MAS. Ele é um líder histórico, um ex-presidente e tem muitas contribuições para dar ao processo de desenvolvimento. Sua habilidade de organizar e unir agricultores, empresários, profissionais, homens e mulheres em uma mesma mesa é incrível. Ninguém tem isso na Bolívia. Sua formação sindical o coloca como um ativo político precioso, extraordinário. Ele tem capacidade de resolver conflitos, de promover novas políticas públicas, de interpretar o termômetro social. É um político em campanha permanente, uma marca mundial. Ajudará a Bolívia em sua relação com o mundo, sem um cargo governo, mas muito perto, apoiando, Luis Arce.

No caso de Álvaro García Linera, ele escreverá muito sobre esse processo, sobre a crise e sobre o golpe de Estado. A sua contribuição à formação revolucionária, política e ideológica será acadêmica. O pensamento crítico de Álvaro García Linera e será, igualmente, uma base importante do governo de Luis Arce.

Uma reflexão final: o triunfo do MAS na Bolívia não foi apenas um retorno a legitimidade e ao caminho indígena, foi também um fracasso do intervencionismo estadunidense na região (seu quintal desde a Doutrina Monroe). Quais serão as implicações desse fiasco?

Tradução: Bruno Roberto Dammski

Foto: Reprodução/ Twitter

Maria Jose Haro Sly é socióloga, nascida na Argentina. Mestre em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina e mestranda em Estudos Contemporâneos da China pela Escola da Rota da Seda, da Renmin University of China.

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