A assertividade da Rússia no sistema internacional, por Matheus Bianco

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No dia 03 de abril de 2019, o norueguês Jens Stoltenberg, secretário-geral da Otan, em discurso no Congresso norte-americano, alertou o perigo da presença de uma Rússia mais assertiva no sistema internacional. Segundo o secretário, o Governo Putin investe cada vez mais no fortalecimento de seu poderio militar, representando uma ameaça aos Estados Soberanos no globo. Não pretende-se neste texto analisar a intencionalidade do discurso em si, a qual serve principalmente como uma mensagem à Donald Trump, da importância da coesão entre EUA e OTAN. Se hoje é um consenso que o Governo Putin de fato possui um comportamento assertivo no mundo, busca-se aqui compreender ou ao menos contextualizar brevemente, como surgiu e como se consolidou esta política externa assertiva.  Para tanto, é necessário voltar algumas décadas, especificamente logo após a dissolução da URSS, em 1991.

Parte 1 – Da cooperação na política externa à assertividade na narrativa

Logo após a dissolução da União Soviética, foi priorizado no governo de Yeltsin uma parceria estratégica com os Estados Unidos, bem como uma maior integração com o ocidente. Na política externa, Rússia e Estados Unidos intencionaram conjuntamente a concretização de diversos tratados de cooperação, envolvendo acesso dos mercados russos por empresas norte- americanas e auxílio do capital dos EUA para a reestruturação da economia russa. Dentro dessa lógica, os Estados Unidos também apoiaram o acesso da Rússia ao GATT, e a Rússia, por sua vez, retirou em 1993 suas tropas da Alemanha adentrando na “Parceria para a Paz” com a OTAN, de modo a construir uma confiança mútua com o bloco militar. Grupos conjuntos de trabalho e cooperação nos setores energéticos e espaciais e o reforço dos acordos de não proliferação de armas de destruição em massa (TNP) e do Tratado de Redução de Armas Estratégicas também foram objetivos buscados pelos dois países.

No entanto, o discurso de cooperação começa a se dissipar dentro do contexto do fracasso da política econômica liberal em reconstruir a economia russa. Durante a eleição presidencial russa de 1996, adversários do governo Yeltsin culparam o Ocidente pelos fracassos das reformas econômicas, bem como criticavam Yeltsin pela cooperação com os Estados Unidos em detrimento dos interesses nacionais russos. A oposição alegava que o governo estaria realizando muitas concessões, como a limitação das vendas de armas ao Irã e a inatividade frente a expansão da OTAN, ganhando nada ou muito pouco em troca. Desse modo, por pressões eleitorais, Yevgeny Primakov, crítico da política externa russa subordinada ao Ocidente foi apontado por Yeltsin como Ministro das Relações Exteriores. Primakov defendia a transição para um sistema internacional multipolar, que não fosse dominado pelos Estados Unidos, ideia que mais tarde seria amplamente utilizada por Putin em seus discursos. Além disso, também defendia uma diversificação da política externa russa, com a fortalecimento dos laços com a Índia e a China. A posição mais assertiva da Rússia foi registrada em sua Doutrina de Segurança Nacional de 1997, a qual identificou a expansão da OTAN como uma ameaça de segurança nacional ao país.

Os grupos nacionalistas dentro da Rússia também passaram a ser mais respaldados pela população e alcançaram maior status dentro da política russa conforme os Estados Unidos agiam como uma força hegemônica global, tomando medidas unilaterais no mundo. Em 1999 ocorreu uma das grandes divergências entre Rússia e EUA, ainda durante o governo Yeltsin: a intervenção da OTAN na Iugoslávia. Apesar da oposição de Yeltsin aos bombardeios contra a Sérvia durante a guerra do Kosovo, a OTAN empregou operação contra o presidente sérvio Slobodan Milosevic, um aliado russo, alegando desrespeito aos direitos humanos contra a etnia albanesa na região. Tal intervenção, sem respaldo das Nações Unidas, promoveu um forte sentimento de insegurança dentro da Rússia, o que deu ainda mais voz às alas nacionalistas dentro do país. Vladimir Putin, nos anos 2000, representou a síntese nacionalista desta insatisfação.

Parte 2 – A Reconstrução nacional-econômica russa

Se Putin em seus primeiros anos de mandato já criticava a hegemonia global norte-americana e o isolamento que o Ocidente aplicava sobre a Rússia após a Guerra Fria, foi ao cenário doméstico que o novo presidente voltou mais atenções, dada a fragilidade econômica e social da nação, ameaçada constantemente pelo perigo da desintegração. Assim, Putin empreendeu esforços na reconstrução da economia, empreendeu medidas para fortalecer e centralizar seu poder, reduziu o poder dos oligarcas e tomou medidas para controlar a Chechênia. A Chechênia particularmente foi vista com especial atenção, uma vez que a Guerra do Kosovo havia aberto precedentes perigosos de que o Ocidente poderia vir a apoiar unilateralmente independências em regiões russas, as quais poderiam ser utilizadas como plataforma de ataque ao restante do território russo. Assim, Putin acreditava que, caso recuasse na Chechênia, e esta alcançasse independência, geraria um efeito dominó que levaria a desintegração da própria Rússia, necessitando então, o emprego de uma política externa ativa para evitar a perda de sua soberania. Esta insegurança, advinda de fatores internos (fragilidade econômica, fragilidade política, risco de desintegração nacional), somada com fatores externos (unilateralidade ocidental, avanço da OTAN), consolidou a narrativa assertiva russa, verificada no Foreign Policy Concept, de 2000, documento que serve como um norteador doméstico e estrangeiro da estratégia de relações exteriores do país. Segundo o documento, a Rússia deveria criar “um cordão de aliados no entorno periférico russo” e “fortalecer a soberania russa e defender posições firmes na comunidade internacional, consistentes com os interesses da Federação da Rússia como um grande poder, um dos centros mais influentes do mundo moderno”.

Consoante com o objetivo de reconstruir este “cordão de aliados”, O Governo Putin, então, empreendeu esforços para reintegrar o espaço ex-soviético, por meio de grupos políticos sob liderança russa. Pressionou a Ucrânia para a entrada no Espaço Econômico Comum, que mais tarde se desenvolveria na União Econômica Eurasiática, junto com Bielorrússia e Cazaquistão.  Também pressionou a Geórgia, que exercia uma política externa mais independente, inclusive com pretensões de adentrar na OTAN, o que ameaçava a influência e os interesses da Rússia na região. Esta aspiração russa de reconquistar controle e influência em sua periferia se ampliou após os eventos que ocorreram a partir de 2003 e 2004.

A invasão unilateral norte americana no Iraque, sem o crivo das Nações Unidas, foi amplamente condenada pelo Governo Putin, pois, além de ver a queda do regime Saddam Hussein como a destruição de um ex – aliado soviético, também verificou uma eventual ameaça ao seu próprio governo. Ainda, a onda de protestos contra regimes ditos corruptos em vários Estados, que culminou no movimento conhecido como revoluções coloridas, principalmente em países de ex – influência soviética, como a Revolução Rosa na Geórgia (2003) e a Revolução Laranja na Ucrânia (2004) foi vista como uma ameaça direta aos interesses russos, uma vez que obstruía a construção de um cinturão “amigável” ao redor da Rússia, como previsto em seu Foreign Policy Concept (2000). Tais revoluções também eram vista pelo Governo Putin como uma ameaça direta ao seu próprio governo, vide discurso do presidente no qual a Rússia “deveria fazer todo o necessário para que nada parecido aconteça dentro do país.” Internalizava-se cada vez mais na Rússia a ideia de que as revoluções coloridas eram um método de desestabilização financiado pelo Ocidente.

Ainda, a Rússia, ao contrário dos anos do Governo Yeltsin, criticou a nova onda de expansão da OTAN de 2004, bloco o qual abarcaria agora os países do Báltico, Romênia, Eslováquia e Eslovênia. Apesar de Putin mencionar que a expansão em si não era uma ameaça à Rússia, denominou a ação contra –produtiva. A assertividade do discurso, a partir de 2004, se estenderia para a confrontação na Política Externa.

Parte 3 – Da narrativa assertiva para a confrontação na Política Externa

Diante dos fatos internacionais expostos acima, a Rússia passou a lançar uma série de campanhas para reconquistar influência nas ex-repúblicas soviéticas. Se utilizou sobretudo de uma campanha de informações para restaurar sua abalada influência política na Ucrânia após a Revolução Laranja, incentivando contradições domésticas e instaurando mecanismos de difusão de uma retórica antiocidental entre a população e dentro do governo ucraniano. A Rússia alimentou esta campanha até 2014, quando a utilizou em seu favor no engajamento da Crise da Ucrânia.

A Rússia também empreendeu uma campanha de desestabilização contra os países bálticos, logo após suas respectivas entradas na OTAN. O Governo Putin executou uma série de cyber ataques em bancos, organizações do governo e empresas midiáticas dessas nações, como na Estônia em 2007, exercendo também pressões diplomáticas e sanções comerciais, como na Letônia em 2006. Na mesma lógica de percepção de ameaça à própria segurança nacional, a Rússia invadiu a Geórgia em agosto de 2008, quatro meses após a Cúpula de Bucareste, na qual a OTAN registrou o interesse em incorporar a Geórgia para o Bloco militar.

A expansão da União Econômica Eurasiática (UEE) a partir da Rússia, que agora engloba Bielorrúsia, Cazaquistão, Armênia e Quirguistão, com alguns acordos comerciais com o Vietnã, também foram um objetivo de Moscou visando securitizar seu entorno periférico e ampliar sua influência para outras regiões, já que também se expandiu para outros países, como o Egito. Houveram também tentativas de incorporação da Moldávia, Ucrânia e Geórgia para o bloco, porém estes assinaram acordos com a União Europeia.

Moscou também fortaleceu a narrativa de interferência norte-americana nos assuntos domésticos russos por meio de ONGs, acusadas pelo Governo Putin de organizarem insurgências em regiões periféricas e na própria Rússia, por meio de financiamento à atividades políticas suspeitas. Por isso, em 2006, Putin aprovou lei que permitiu proibir o financiamento de ONGs que fossem consideradas ameaças à segurança e à moral nacionais, exigindo acompanhamento da origem e da quantidade de financiamento recebido. Já em 2012, foi aprovada a Lei dos Agentes Estrangeiros na Rússia, que garantia ao Governo Putin o poder de expulsar ONGs do país.

Depreende-se deste contexto que, a passagem da narrativa de cooperação com o Ocidente durante o governo Yeltsin foi abandonada pelo governo Putin no início dos anos 2000, iniciando um período de narrativa assertiva perante o comportamento unilateral norte- americano e ocidental no sistema internacional. Porém, priorizando a reestruturação da economia russa e a integridade de seu território, no primeiro mandato do Governo Putin não se observa uma Política Externa que acompanhasse o discurso; estes seriam alinhados a partir de 2004, quando a Rússia já havia superado seus principais desafios domésticos, como demonstrado pela descrição dos eventos expostos. Apesar de um breve intervalo entre 2009 e 2010, no qual houve a tentativa de uma redefinição das relações entre Rússia e Estados Unidos pelo Governo Obama, a longo prazo esta tentativa frustrou-se dada as divergências de interesses entre os países, agravando-se com a intervenção ocidental na Líbia.

Conclusão 

A consolidação da Rússia como uma voz contrária ao Ocidente, a qual pode-se visualizar em eventos recentes – como na Crise da Ucrânia e na Crise da Síria -, encaixa-se na progressiva assertividade da política externa russa das duas últimas décadas, respaldada também por um forte sentimento russo de insegurança proveniente do medo de ingerência ocidental em sua nação. É preciso ter em mente os fatos e eventos expostos acima para a melhor compreensão e contextualização das palavras de Jens Stoltenberg, as quais, quando não compreendidas dentro de um processo maior, podem vir a representar apenas uma versão dos fatos.

Fontes:

Al Jazeera – NATO chief warns of ‘more assertive Russia’ in US Congress speech

BBCRussian Parliament adopts NGO Foreign Agents Bill

EGYPT TODAY. Egypt, Eurasian Union to start negotiating free trade agreement

El PAIS. Clinton anuncia ayuda urgente a Yeltsin para que gane el referendum

EUA.Vancouver Declaration: Joint Statement of the Presidents of the United States and the Russian Federation. Authenticated U.S Government Information.

JAMESTOWN FOUNDATIONPrimakov Outlines Russia Foreign Policy Priorities.

THE GUARDIANYeltsin: Don’t push us towards military action

THE GUARDIAN Putin Still Bitter on The Orange Revolution

REUTERSPutin says Russia must prevent “color revolution”

RUSSIAThe Foreign Policy Concept of the Russian Federation

Política ExternaPolítica InternacionalRússia

Publicado originalmente em https://www.ufrgs.br/nebrics/a-assertividade-da-russia-no-sistema-internacional/#.XzWkwsOhkFE

Foto: Kremlim

Matheus Bianco é Mestrando no Programa de Pós Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais (PPGEEI-UFRGS). Pesquisa política externa russa e o impacto das sanções econômico-financeiras dos Estados Unidos sobre Moscou após a Crise da Ucrânia, bem como o aprofundamento das relações sino-russas e o impacto desta na Ordem Liberal.

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