“Vivir Bien” e desenvolvimentismo, por Allysson Lemos

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A ideia de Vivir Bien na Bolívia tem origem nas expressões aymara sumaj qamaña e quéchua sumak kawsay. Apesar da dificuldade em traduzi-las dada sua origem polissêmica, típica dos idiomas autóctones da América, as expressões são significadas a partir do que se compreende que são os modos de vida originários dos ayllus (comunidades indígenas originárias). Portanto, na sua compreensão política, estão ligadas à ideia de descolonização (SCHAVELZON, 2015).

No contexto boliviano explicitado acima, o Vivir Bien pode ser compreendido como uma sistematização de pautas reivindicatórias referentes a um modo de vida andino e comunitário. Neste sentido, tem a mesma origem da discussão do Estado Plurinacional, qual seja, a descolonização das práticas políticas do Estado-Nação boliviano, com vias a estabelecer uma ordem política na qual se revejam a relação predatória do homem com a natureza, individualista e com o objetivo da produção de excedente e da acumulação capitalista.

Se esta visão ganha força no contexto de crítica ao neoliberalismo, a crítica também cabe às políticas desenvolvimentistas historicamente defendidas pela esquerda e, em grande parte, implementadas por ela no chamado “ciclo progressista” na América Latina, quando setores subalternizados assumiram governos no subcontinente. Esta política que pressupõe o “desenvolvimento das forças produtivas” tem relação histórica com o debate feito na União Soviética, sobre a revolução democrático-burguesa, mas também é importante mencionar que se desenvolveu a partir de importantes intelectuais latino-americanos de estirpe nacionalista, vinculados à CEPAL .Dentre eles está o argentino Raúl Prebisch, que vê neste caminho a única possibilidade de superação da desigualdade entre capitalismo central e capitalismo periférico, mediante a apropriação do progresso técnico para tal fim:

De ahí el significado fundamental de la industrialización de los países nuevos. No es ella un fin en si misma, sino el único medio de que disponen éstos para ir captando una parte del fruto del progreso técnico y elevando progresivamente el nivel de vida de las masas (PREBISCH, 1986, p.479).

À esta visão, que tem por fim o aumento do consumo das massas como forma de “elevar o seu nível”, os defensores do Vivir Bien contrapõem que não se trata de viver melhor, no sentido de ter mais riqueza, mas sim viver bem, em comunidade e, em reciprocidade com a natureza. Esta é a direção dada da crítica ao modo de vida “ocidental”, propondo-se nova forma de vida social.

O Vivir Bien é uma proposta política que vai da comunidade ao Estado, mas também do Estado à comunidade. Assim como a plurinacionalidade, tem origem nas lutas indígenas do Altiplano boliviano, uma vez que aquilo que é entendido como cultura aymara e quechua se converte em valores políticos. Por outro lado, torna-se exercício do Estado formulá-lo enquanto política pública. E não é reflexão simples pensar o lugar político-representativo de um Estado Plurinacional, que em sua Constituição, reconhece autonomias indígenas de gestão do território e da justiça. Por vezes a justiça tradicional e a comunitária se vêem concorrentes, e o formato desta articulação ainda não está dado. Por outras vezes, os interesses do Estado são mesmo contraditórios com os da comunidade.

Neste sentido, há críticas dirigidas aos governos do MAS-IPSP, capitaneados por Evo Morales e Álvaro García-Linera. Para alguns, a agremiação teria enfatizado uma política neodesenvolvimentista e industrialista e, até mesmo, ocupando o espaço político nacionalista que antes pertencia ao MNR, partido dirigente da revolução de 1952 (STEFANONI, 2007).

No entanto, o antropólogo Salvador Schavelzon destaca que não há um abandono da discussão comunitária na discussão teórica de García-Linera. Para este, o Estado não deve ser o responsável por criar o comunitário, mas as próprias comunidades devem fazer-se autonomamente. O ex vice-presidente admitiria que isto já ocorre no plano político e contestatório, mas não na gestão da produção. Para Schavelzon, no entanto, admiti-lo sem fazer a crítica necessária a política de industrialização que estaria em conflito com o Vivir Bien, seria insuficiente. García-Linera estaria então entre os intelectuais de esquerda que pretendem fazer uma associação entre socialismo e Vivir Bien. No caso particular deste autor se trata do “socialismo comunitário do bem viver”, o que marca a influência que tem de Mariátegui e do “comunismo agrário”.

Com isto, Schavelzon nos mostra que no debate do Vivir Bien há muitas vertentes. Dentre elas, umas se contrapõem mais diretamente ao desenvolvimentismo latino-americano, em outras ambas lógicas concorrem e, em alguns casos, desenvolvimento e bem viver se fazem utopias análogas. Estabelecido assim o paradigma do debate da descolonização na região andina, pode-se partir para um debate de perspectivas.

Para Urquidi (2018), há dois momentos importantes a serem considerados no pensamento crítico latino-americano. O primeiro deles seria a aposta no pensamento revolucionário socialista, marcados então pelo dilema da questão nacional de seus países, cujos limites já foram largamente debatidos, e que teriam sido colocados em xeque pelas ditaduras militares. O segundo momento teria início nos anos 1980, quando a esquerda se organizaria na via democrática e, assim temas como o indígena passariam a fazer parte da agenda.

Segundo a autora, também este momento demonstrou seus limites. Para ela, o debate pós-capitalista e pós-colonial se deu sem que as relações materiais fossem rompidas, o que, por sua vez, retrata os limites também do Estado Plurinacional.

A este respeito, é interessar observar também uma transição no pensamento de Álvaro García-Linera. Em seu livro A Potência Plebeia (2010), que é uma organização de artigos escritos pelo próprio autor em um período anterior aos governos do MAS-IPSP, podemos perceber um marxismo crítico com ênfase na superação das relações sociais capitalistas e colonialistas. Já em Socialismo Comunitario del Vivir Bien (2015), e também na entrevista concedida a Schavelzon (2015), onde se vê diante dos desafios de governar, García-Linera defende uma política de desenvolvimento conjugado com uma visão de democracia étnica como caminho ao socialismo comunitário do bem viver. Nesta nova formulação Estado e comunidade devem ter papeis políticos menos associados, tendo o Estado a função de garantir o “interesse geral”.

No entanto, Urquidi acredita que, tanto o Estado Plurinacional como o Vivir Bien, podem ser uma alternativa viável ao capitalismo na América se pensado a partir de suas matrizes comunitárias, substituindo o modelo agro-exportador e constituindo uma política de desenvolvimento autônomo. Do ponto de vista do debate intelectual tais experiências são também proveitosas, já que faz avançar o debate em torno da ideia de democracia.

Por fim, tendo em vista a presente crise do ciclo masista na Bolívia diante do golpe político tramado pela elite crucenha, mas também os levantes indígenas em El Alto, há que se perguntar que fim terá a questão indígena no país. Vozes de um cristianismo militante se levantaram contra o debate indígena neste processo, e um nacionalismo eurocêntrico, por mais paradoxal que possa soar, ganha força. Por outro lado vemos David Choquehuanca, um dos grandes ideólogos do Vivir Bien no governo do MAS-IPSP, aparecer na chapa masista indicado como vice-presidente.

Foto: ABI

Allysson Lemos. Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

Referências bibliográficas:

GARCÍA LINERA, Álvaro. A Potência Plebeia. São Paulo: Boitempo, 2010.

GARCÍA LINERA, Álvaro (2015). “Socialismo comunitario del ‘vivir bien’”. La Migraña… Revista de Análisis Político, n. 15.

PREBISCH, Raúl. El desarrollo economico de la América Latina y algunos de sus principales problemas. Desarrollo Económico, v.26, Nº 103, 1986, pp. 479-502.

SCHAVELZON, Salvador (2015). Plurinacionalidad y Vivir Bien/Buen Vivir. Dos conceptos leídos desde Bolivia y Ecuador. Quito: Abya Yala-CLACSO.

STEFANONI, Pablo. Las tres fronteras de la revolución de Evo Morales: Neodesarrollismo, decisionismo, multiculturalismo. In: SVAMPA, Maristella; STEFANONI, Pablo. Bolivia: Memoria, insurgencia y movimientos sociales. Clacso, 2007.

URQUIDI, Vivian. Repensar a questão (pluri)nacional e o desafio da democracia intercultural. In: MENDES, J.M.; SANTOS, B.S. Demodiversidade: Imaginar Novas Possibilidades Democráticas. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018.

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