Equador: um barco em meio a tempestade, por Carlos García Torres

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1. A tempestade no horizonte

No final de fevereiro de 2020 a Ministra da Saúde do Equador, Catalina Andramuño, apareceu na televisão para anunciar que estavam sendo tomadas algumas medidas para evitar a entrada do vírus SARS-COV-2 no Equador. As medidas consistiam, simplesmente, em controlar a temperatura dos passageiros nos aeroportos internacionais do país. Em meados de março, ela compareceu novamente diante das câmeras para explicar que, apesar dos controles, o vírus havia entrado no país e um caso positivo tinha sido confirmado. A partir desse momento, os acontecimentos se deram de forma vertiginosa. O porto de Guayaquil se converteu no principal foco da pandemia. A enfermidade, no início, foi implacável entre os mais ricos. Eles, como se soube posteriormente, haviam recebido numerosas visitas do exterior, vindas para participar de festas luxuosas, nas quais o vírus de propagou eficazmente. Poucos dias depois, os casos começaram a aparecer nos locais mais pobres de Guayaquil. Quando a doença se espalhou, aspectos importantes da sociedade equatoriana se tornaram visíveis: a) as grandes deficiências do sistema de saúde e b) as enormes desigualdades entre a população. No Equador, assim como no resto do mundo, tornou-se evidente que o principal vetor de contágio e de morte é a desigualdade social.

Imagens macabras apareceram nos noticiários e nas redes sociais, cadáveres abandonados pelas ruas, necrotérios superlotados, filas nos hospitais e unidades de saúde, enfim, um completo colapso do sistema hospitalar. Enquanto isso, a prefeita de Guayaquil, Cinthya Viteri, até aquele momento herdeira da liderança do Partido Social Cristão, aparecia como uma figura absurda, confusa e vencida pelas circunstâncias. Em certa ocasião se apresentou, com lágrimas nos olhos, para anunciar que ela também estava contaminada. O vírus se propagou por todo o país, mas com mais virulência nas províncias costeiras.

2. Deserções a bordo

O órgão estatal encarregado de enfrentar esse tipo de emergência é o Serviço Nacional de Gestão de Riscos e Emergências do Equador (SNGRE). No início da pandemia, esse órgão se encontrava sob a direção de Alexandra Ocles, uma funcionária com uma longa carreira política que, pontualmente, todos os dias, dava informações sobre o avanço da doença. Cada informe tornava evidente que o registro do número de casos não era adequando dada a necessidade premente de efetuar testes em Guayaquil. A Ministra da Saúde, Catalina Andramuño, apresentou sua demissão depois que foi revelada uma comunicação em que o Ministro das Finanças, aparentemente, negava fundos adicionais para combater a pandemia. Logo depois, Alexandra Ocles renunciou a seu posto em meio a um escândalo de superfaturamento na compra de alimentos para os que haviam perdido sua renda por causa da quarentena. A partir desse momento, os informes oficiais passaram a ser dados pela Ministra de Governo, María Paula Romo, pelo vice-presidente, Otto Sonnenholzner, e pelo novo Ministro da Saúde, Juan Carlos Zevallos, um especialista em epidemiologia. As medidas de confinamento começaram a ser relaxadas em maio. A partir desse mês o foco da pandemia mudou para as províncias da serra e da Amazônia, que, até esse momento tinha apresentado um número moderado de casos.

Durante os primeiros meses da crise sanitária o papel do presidente, Lenín Moreno, foi quase nulo, gerando fortes rumores sobre o protagonismo assumido pelo vice-presidente, Sonnenholzner. Para dissuadir tais rumores, Moreno foi a televisão explicar que suas condições de saúde não permitiam que atuasse diretamente, mas que continuava governando o país.

Logo depois, o vice-presidente Sonnenholzner também apresentou sua renúncia, ao que tudo indica, com a intenção de se lançar candidato à presidência da República, o que acabou não se efetivando.

3. O barco afunda, mas as obrigações são pagas

No mês de julho, o Equador pagou pontualmente os bônus de sua dívida externa, alegando que o cumprimento escrupuloso dessa obrigação permitiria ter acesso a mais recursos externos no futuro. Logo ingressou em um longo processo de renegociação da dívida, que o governo classificou como exitoso, anunciando a chegada de recursos externos para o orçamento nacional, ou seja, uma nova dívida. Entretanto, os pagamentos dos professores e dos funcionários públicos foram suspensos no último mês, em seguida deixou-se de pagar os médicos, mas os pagamentos do exército e da polícia foram mantidos em dia.

A isso se soma o triste fato de que, nesse momento, 80% da população economicamente ativa não tem um emprego adequado. No mês de junho foi promulgada a “Lei de Apoio Humanitário” que contém uma severa reforma trabalhista, a qual inclui a redução das jornadas de trabalho em até 50% e dos salários em até 45%, além de outras medidas tais como a suspensão de despejo de inquilinos e de licenciamento de automóveis. Ademais, o desemprego continua crescendo em ritmo acelerado. Nos últimos dias, foi decretada a antecipação do imposto de renda para as empresas que obtiveram lucros acima de cinco milhões de dólares.

4. A tática dos piratas

Enquanto tudo isso acontecia veio à tona um escândalo de corrupção que envolve numerosos membros da assembleia governamental. Foi descoberto que os hospitais do país foram “confiados” a diversos parlamentares para que eles intervenham ilegalmente nos processos de compras públicas e na distribuição de medicamentos. O resultado foi a prisão do parlamentar Daniel Mendonza, cabeça visível do bloco de Moreno. Além disso, foi descoberto que alguns medicamentos eram roubados das farmácias hospitalares para serem vendidos a preços exorbitantes. Essa descoberta causou enorme indignação no país e a queda da pouca credibilidade que o governo ainda tinha. Ao mesmo tempo, veio a público que o ex-presidente da República, Abdalá Bucaram, e sua família são parte integrante da trama de corrupção nos hospitais. A reação dos acusados por corrupção é assombrosa. Valendo-se de um artigo da legislação que impede o prosseguimento de processos penais contra candidatos que concorrem numa eleição, muitos desses acusados se lançaram candidatos para as eleições de 2021 obtendo, assim, imunidade para os seus delitos.

5. Em busca de um novo timoneiro

A atenção política do país, atualmente, se dirige às eleições de janeiro de 2021. Nas quais serão eleitos o presidente, o vice-presidente, os parlamentares e os representantes para o Parlamento Andino.

Os seguidores do ex-presidente, Rafael Correa, que constituem um núcleo político decisório e eleitoral importante, rejeitam a traição de Lenin Moreno aos postulados que o levaram ao poder. Do outro lado se encontram os partidos de direita, agora unidos numa aliança que inclui o Partido Social Cristão e o movimento CREO. Outros partidos de esquerda se encontram ainda em uma fase de organização. Entre eles o movimento Pachakutik, representante do setor indígena, que decidiu participar com candidato próprio, sem aderir a nenhuma aliança de esquerda. O mesmo fez o Partido Esquerda Democrática, de tendência social democrata, e o Partido “Democracia Sí”. A eles somam-se ainda uma série de candidatos populistas que incluem uma candidatura de extrema direita, autodenominada “pró vida”. Esses candidatos, entretanto, tem pouquíssima possibilidade de êxito.

6. O tufão judicial

Agora cabe analisar os problemas jurídicos que enfrenta Rafael Correa e sua eventual candidatura a vice-presidência da república. O movimento Força Compromisso Social levantou a bandeira de seguidores de Correa e aglutinou muitos setores que o apoiaram no passado, assim como um vasto número de ex-funcionários do seu último mandato. Força Compromisso Social escolheu como candidato a presidência Andrés Aráuz, um jovem economista (35 anos) que ocupou posições de destaque no governo de Correa. Como vice foi escolhido o próprio Correa, porém, sua candidatura não foi aceita pelo Conselho Nacional Eleitoral com o argumento de que ele não havia comparecido pessoalmente, como aponta um regulamento específico.

Enquanto tudo isso acontecia, na Corte Nacional de Justiça tramitava um recurso de cassação do processo judicial em que Rafael Correa foi condenado a 8 anos de prisão. Esse processo teve origem em declarações de funcionários que, segundo a promotoria, expuseram um esquema de corrupção que financiava, ilegalmente, as atividades eleitorais do Movimento Alianza País, atualmente no poder. Desse esquema participavam empresas privadas (entre elas a Odebrecht) que prestavam serviços e emprestavam dinheiro para as campanhas eleitorais em troca de possíveis contratações. Em 20 de julho de 2020, dezoito acusados, entre eles o ex-presidente Correa, antigos funcionários e vários empresários, foram condenados, em sua maioria, a pena de 8 anos de prisão. Dia 7 de setembro de 2020, a Corte Nacional negou o recuso apresentado por Correa e outros acusados ratificando a pena imposta. O debate jurídico não se concentrou na existência ou não do esquema de corrupção, mas sim na participação de Correa nesse esquema. Os seguidores do ex-presidente consideraram que o processo não foi imparcial, mas dirigido com fins políticos. A procuradoria insiste na existência de um corpo de provas que evidenciaria claramente o esquema ilegal e a participação do ex-mandatário.

Revendo as circunstâncias do processo com calma parece muito difícil negar a existência de tal esquema de corrupção. Contudo, é indiscutível que o processo judicial foi maculado por interesses políticos e por pressões do próximo pleito eleitoral.

Na justiça ordinária o ex-presidente Correa tem apenas o recurso a revisão, que pode acionar se aparecerem novas evidências. Na justiça constitucional tem a possibilidade de apresentar, para a Corte Constitucional, uma ação extraordinária de proteção, caso considere que tenham sido violados os seus direitos constitucionais. Na justiça internacional pode apresentar um recurso a Corte Internacional de Direitos Humanos que, de acordo com a legislação equatoriana, tem poder para interferir nos assuntos judiciais internos.

7. Sempre existe um horizonte

Por mais que o panorama possa parecer desolador, todos esses infortúnios não podem ser o presságio de um futuro sinistro para esse país. O Equador, ao longo da sua história, soube superar tempestades de todos os tipos e seguir em frente. Suas riquezas naturais, sua prodigiosa biodiversidade e, sobretudo, seu capital humano seguem intactos. Isso, de uma maneira ou de outra, garante a esperança de um futuro melhor.

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Tradução: Bruno Roberto Dammski

Foto: Fredy Cosntante/ Presidência da República do Equador

Carlos García Torres Ph.D.
COORDENADOR DA CÁTEDRA UNESCO DE ÉTICA Y SOCIEDAD EN LA EDUCACIÓN SUPERIOR
UTPL – Universidad Técnica Particular de Loja – Equador
Doutor em Saúde e Ciências Sociais (UNED) Espanha.
Doutor em Jurisprudência (Universidade Nacional de Loja) Equador.
Mestre em Gênero, Equidade e Desenvolvimento Sustentável (Universidade Técnica de Ambato) Equador.
Bacharel em Direito (Universidade Nacional de Loja) Equador.
Licenciatura em Ciências Sociais, Políticas e Econômicas. (Universidade Nacional de Loja) Equador.
Bolsista Fulbright na Universidade de Massachusetts, em Amherst.

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