Bolívia e o paradigma da plurinacionalidade, por Allysson Lemos

Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on whatsapp

Nesta semana li uma frase nas redes sociais: “Evo voltará e será milhões”. É Tupaj Katari que está sendo parafraseado. Katari foi um indígena que, no século XVIII, ao lado de sua esposa Bartolina Sisa, liderou uma rebelião contra o regime colonial e sitiou a cidade de La Paz por 8 meses. Capturado e condenado a ser esquartejado, Katari teria dito a frase “eu voltarei e serei milhões”. Na ocasião da escrita de minha dissertação escolhi esta frase como epígrafe. Ela diz mais do que se pode compreender na nossa visão de mundo ocidentalizada, se remete às formas aymara e quechua de estar no mundo, que são necessariamente coletivas.

Em finais dos anos 1960 surge uma corrente política de nome katarismo, que falava na existência de diversas nações originárias na Bolívia que não se reconheciam na nação boliviana,  concebida como branco-mestiça: vivia-se de forma individual, depredando a Mãe-Terra e liquidando as formas indígenas de ser no mundo. Falavam que na Bolívia exisitia um capitalismo colonial que opimia o indígena enquanto classe e nação. E assim Katari voltou como milhões, diversas vezes, em marchas, bloqueio de estradas, táticas de mobilização indígenas que permanecem atuais nos movimentos sociais bolivianos.

Esta crise histórica do Estado-Nação boliviano terá um momento de apogeu, à medida que se somou à crise do neoliberalismo enquanto regime econômico do país. No início deste século, em reação à privatização dos serviços de água e da exploração do gás natural, cinco presidentes caíram nos episódios conhecidos como a Guerra da Água e Guerra do Gás. Neste período formou-se um organismo político chamado Pacto de Unidade, que congregou os mais diferentes setores subalternos bolivianos contra as privatizações: estas, além dos impactos econômicos causados, entregavam os recursos naturais da Mãe-Terra à exploração predatória dos capitalistas estrangeiros. Além disso reivindicavam uma Assembleia Constituinte que deflagrasse o Estado Plurinacional.

Este processo culminou na eleição de Evo Morales, que como se pode perceber, mais do que a “eleição de um indígena”, como se trata comumente, significou para esses povos um passo importante numa reivindicação de descolonização do Estado. O Estado Plurinacional foi promulgado em 2009, com reconhecimento de que os povos originários tinham direito prioritário ao acesso à terra, e deveriam administrá-la segundo seus valores. Dessa maneira, foram reconhecidas oficialmente 36 nações originárias, bem como os 36 idiomas que lhe correspondem, que passaram a ser obrigatoriamente ensinados nas escolas localizadas nos territórios onde estas nações são predominantes. A nova constituição reconhecia também o direito à autonomia na gestão do território por parte das comunidades originárias, bem como previa a formalização da justiça comunitária.

Ainda neste mérito, são destacados os esforços do governo no combate ao racismo institucional presente no país. A valorização das tradições indígenas, o reconhecimento à ancestralidade como valor, não ficaram apenas na retórica de governo, mas reverberaram em políticas de democratização do espaço urbano, pois muitos locais, como grandes restaurante, igrejas e até mesmo espaços do Estado proibiam a circulação de indígenas e/ou o uso de vestes tradicionais. Este já não era mais o cenário de La Paz em 2014, quando lá estive em trabalho de campo, para realização de algumas entrevistas para minha pesquisa.

Também a vice-presidência do país, chefiada pelo sociólogo e ex-guerrilheiro Álvaro García-Linera, se converteu em um espaço de formulação sobre os caminhos da Bolívia, relatados à época sob o nome de “proceso de cambio” (processo de transformação). Através desta inserção no Estado foram republicadas, por exemplo, as obras do intelectual indianista Fausto Reinaga, o que proporcionou uma série de estudos sobre o autor, muitos deles publicados na revista acadêmica “La Migraña”, também uma publicação da vice-presidência, onde se pode encontrar artigos de famosos intelectuais bolivianos e até mesmo internacionais, como David Harvey, Iñigo Errejon e Pablo Iglesias.

No entnanto, como a realidade é contraditória e não é feita de belas histórias e epopeias, é preciso notar que a construção do Estado Plurinacional, para além do texto constitucional, – mas também já nele -, conviveu com a permanência das pretensões políticas da elite latifundiária e também dos setores médios urbanos, que sempre foram o “calcanhar de Aquiles” do MAS enquanto agremiação política. No processo da Assembleia Constituinte, a elite latifundiária da região conhecida como “Meia Lua”, – que corresponde aos departamentos de Tarija, Beni, Santa Cruz e Pando – encabeçou  um ciclo de protestos de fins separatistas que quase culminaram em guerra civil no país.  

Além disto, o primeiro mandato do governo de Evo Morales foi marcado pela nacionalização da exploração do gás natural, importante recurso natural do país. Para se ter uma ideia, a reserva boliviana é a segunda maior do continente, estando atrás apenas da Venezuela, e  50% do consumo do recurso no Brasil provém da produção boliviana. À época, a medida atingiu as atividades da multinacional brasileira Petrobrás, causando um surto nacionalista em setores da burguesia de São Paulo. No entanto, a cooperação entre Brasil e Bolívia apenas se fortaleceu, uma vez que o então presidente Lula foi compreensivo com a redução das assimetrias presentes nas relações comerciais entre estes dois estados nacionais. Neste mérito, Evo Morales se somou aos esforços de governos latino-americanos pela integração no subcontinente, processo definido por muitos como o “ciclo progressista” na América Latina.

Este foi um dos grandes exemplos do fortalecimento da economia boliviana por meio da valorização de empresas estatais, já que toda a produção passaria a ser controlada e regulamentada pela estatal Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB). Ou seja, se do ponto de vista étnico o Estado Plurinacional se consolidou como o organismo de coesão política que o típico Estado-Nação liberal nunca foi capaz de dar conta, era preciso também fazê-lo no que tange ao projeto de país, e a solução encontrada pelo governo foi o avanço em medidas desenvolvimentistas. Promulgado o Estado Plurinacional, tiveram protagonismo na agenda do governo as grandes obras públicas e a campanha pelo acesso ao mar, em negociação com o Chile.

Este último tema consiste na perda de território boliviano para o Chile na Guerra do Pacífico, na qual Peru e Bolívia combateram o Chile entre 1879 e 1884, que teve origem na disputa do negócio do salitre e nos impostos cobrados ao Chile. Esta reivindicação ganha força pelo entendimento da cúpula do governo de que o Oceano Pacífico será o principal palco das transações comerciais no mundo, tendo em vista o crescimento da China e de outros países da Ásia no cenário internacional. O apoio à  demanda de recuperar acesso ao mar foi reforçado pelo Foro de São Paulo acontecido em Caracas, neste ano de 2019, mas já havia sido rejeitado pela Corte Internacional de Haia.

Sobre as grandes obras mencionadas, se destaca o plano de construção de uma estrada que atravessava comunidades indígenas na região de TIPNIS, no Oriente do país. O então vice-presidente Álvaro García-Linera, em defesa do projeto, argumentou que é uma demanda histórica nacional a construção desta estrada, de maneira a dinamizar as transações comerciais do Oriente boliviano com a região andina, em especial a capital La Paz. No entanto, houve um grande processo de marchas e bloqueios que culminaria na fratura do Pacto de Unidade, abalando o construto hegemônico que possibilitou o governo de Evo. A elite branca cruceña foi hábil em explorar esta contradição, inclusive angariando lideranças indígenas para a candidatura de Carlos Mesa, (ex-presidente neoliberal que renunciou no período da Guerra do Gás), no último pleito.

Na última eleição o discurso de campanha do MAS se concentrava no grande feito de crescimento econômico de 5% ao ano em média nos últimos 15 anos, crescimento da classe média do país, ingresso de mais jovens no Ensino Superior, e nos percentuais expressivos de pessoas que saíram da linha da pobreza. Familiar? Se o pacto desenvolvimentista foi eficiente como alternativa republicana ao neoliberalismo em crise na América Latina, resta saber se o será como pauta de mobilização da resistência ao avanço do aumento da exploração do trabalho por meios autoritários, que é o contexto atual no sub-continente. O golpe na Bolívia terá sucesso? Evo vencerá a queda de braço? Ou veremos o ressurgimento do Pacto de Unidade colocando sua agenda política? A experiência boliviana mais uma vez coloca importantes variáveis à reflexão política.

Foto: Fotos Públicas

Alysson Lemos. Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

Fontes:

Site da BBC:  https://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-43459908

CAMARGO, Alfredo José Cavalcanti Jordão de. Bolívia – A Criação de um Novo País. Brasília: Ministério das Relações Exteriores, 2006.

GAMA DA SILVA, A.L. Para Além do Estado-Nação? Disputas Políticas sobre a Ideia de Plurinacionalidade na Bolívia. 2016. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Centro de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

GARCÍA LINERA, Álvaro. A Potência Plebeia. São Paulo: Boitempo, 2010.

O seu apoio é muito importante

Faça uma assinatura. Participe desse projeto. Ajude e manter e aperfeiçoar o portal América Latina

Leia também